Diante do crescimento dos diversos manifestos políticos femininos no Brasil contemporâneo, a abordagem das categorias “gênero” e “raça” no contexto político brasileiro tem sido emergente em análises sociais recentes. É necessário entender como tais categorias e suas reivindicações se enquadram na luta por reconhecimento. Afinal, é dentro da luta por reconhecimento que os sujeitos políticos se formam e ganham expressividade.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Nos últimos anos, o conceito de representatividade política passou a se desprender da pluralidade de definições de “representação política”. É por isso que, hoje, ao se usar o termo “representatividade” pensamos em uma perspectiva de conflitos que já protagoniza as lutas sociais das chamadas “minorias” (e que aqui chamaremos de “categorias subalternizadas”). Contudo, ao se analisar a pluralidade do conceito de “representação política”, percebe-se como – em diversas definições – a abrangência destas categorias é reestruturada a partir de um contexto de maior participação política.
É preciso pensar, primeiramente, como a função de um governo representativo é ampliar as perspectivas do público, além de não permitir que interesses privados prevaleçam interesses coletivos. Na modernidade, o Estado passa a representar exclusivamente os interesses comuns e ser responsável pela administração dos bens públicos. Assim, por representação política entende-se a autorização e a delegação do representado ao representante. (ALMEIDA, 2018)1.
A representação política passa pelos crivos do reconhecimento, a partir do momento em que o sujeito – ao se sentir representado – também se sente reconhecido quanto sua própria identidade e “lugar” no mundo. É nesse sentido que o conceito de representação apresenta um dinamismo que acompanha as próprias transformações políticas. Analisando o contexto brasileiro, a luta por reconhecimento também emprega a própria democratização da representação, através das reivindicações de sufrágio universal e de um pluralismo democrático, capaz de abranger mais categorias sociais e interesses no poder.
Sob o espectro de transformação na democracia representativa da última década, a participação política, o pluralismo democrático e a representatividade identitária surgiram como possibilidade de ocupação política de grupos subalternizados. A demanda por inclusão política nos processos representativos se configura como o desafio de programar uma política que represente identidades, além de “ideias”; e que busque a inclusão de subalternizados na participação política. (PHILLIPS, 2001)2. A exclusão política opera, por conseguinte, tanto institucionalmente (no caso de sub-representações do sistema eleitoral), quanto no acesso destes grupos à participação.
Desta forma, a representação política pode ser compreendida como um processo que vai além do Estado e da institucionalidade em si. No atual processo de transformação política, a representação pode existir na sociedade civil. Por isso a representação eleitoral é parte da democracia representativa, mas não é sinônimo dela. O social torna-se político e “a legitimidade da representação depende da interação entre a sociedade civil e a política”. (URBINATI, 2006)3.
O surgimento de novas demandas de representação e representatividade a partir da última década demonstra como a representação política é dinâmica e incapaz de abranger e atender todos os interesses dos grupos sociais. Mas, de fato, a abordagem dialética de interesses e grupos distintos é essencial para o desenvolvimento de um pluralismo democrático e representativo. E é essa a importância de debatermos aqui a questão do espaço de fala.
A partir de uma diversidade multicultural e de um amadurecimento da cultura globalizada, uma representação política descritiva (ancorada na experiência identitária e no reconhecimento do sujeito) tomou a centralidade do discurso político. Para debater o espaço de fala no contexto da representatividade, é preciso primeiro definir o que é espaço de fala. Espaço de fala (ou “lugar de fala”) é uma expressão que representa:
“[…] a busca pelo fim da mediação: as pessoas que sofrem pré-conceito falam por si mesmas, protagonizam a própria luta. […] De maneira que identidade e lugar de fala (próximos, porém não equivalentes), se situam no âmbito da performatividade, isto é, são constituídos pelo discurso e o enunciador, o corpo e as condições de enunciação, os atos e os gestos.”. (KLINGER in: Entre o lugar de fala e o ponto de vista, a conquista de novos modos de existência)4.
Existem diversos debates sobre a questão do espaço de fala na representação política. Segundo Phillips (2011), “para um político que queira representar uma experiência que não seja a sua própria, o diálogo também se torna inviável.”. Ao contrário, Young (2006)5 mostra que “o representante não é substituto e não é um espelho do seu representado, mas fala pelo representado. […] O eleito não necessariamente deve sentir a experiência do eleitor.”.
É possível inferir: há como representar interesses, opiniões e perspectivas que não sejam compatíveis às experiências do sujeito? Como falar pelo representado sem silenciar sua própria capacidade de se expressar? Spivak (2010)6 mostra que não é possível falar pelo representado sem compadecer ao sistema que o silencia. Nesse sentido, o intelectual – ao falar no lugar do “outro” – reproduz a dominação e a opressão imperialista. Sendo assim, mesmo que o subalterno fale, o seu discurso não será ouvido. A posição do intelectual de “reivindicar o lugar do outro pelo outro” acaba fortalecendo ainda mais a subalternidade do sujeito.
Nesse sentido, “falar em nome de” levaria à própria manutenção de subalternidade dos “subalternos”. Um ato de resistência em nome do subalterno reproduz as estruturas opressoras. A proposta de Spivak (2010) “é que seja tarefa do intelectual pós-colonial criar espaços por meio dos quais o sujeito subalterno possa falar e ser ouvido.” (PATERNIANI, 2015)7.
Assim, ao contextualizar o espaço de fala no contexto da representatividade política também o compreendemos como um “contrato de experiência” que vai muito além da representação de interesses. Se antes o subalternizado não tinha poder de expressão, hoje – em uma possível “democratização da representação” – é através da ocupação política que o subalternizado se expressa.
Assim, nota-se um enorme crescimento em relação às mobilizações políticas que envolvem pautas identitárias. Mulheres, negros, LGBT’s, entre outros grupos específicos ocuparam o espaço representativo através de diversos modos de organização. Mas como as pautas identitárias se articulam diante de uma representatividade política experimental? E qual a importância da análise do reconhecimento em um contexto analítico de representação política?
As novas construções analíticas abrangem uma maior diversidade de manifestações políticas. Ao se afirmar que a representação política é um “contrato de experiência”, retrata-se também uma maior diversidade analítica com base nas manifestações políticas de reconhecimento. Desta forma, a luta por representatividade também perpassa uma luta por reconhecimento, sendo a luta por reconhecimento uma luta por respeito e ética.
As questões da identidade e a organização da coletividade em torno das pautas identitárias seria, para além de uma questão de “interesses”, uma questão de eticidade. As reivindicações destes grupos subalternizados passa tanto a buscar a igualdade econômica e social, quanto a eliminar as segregações de natureza simbólica e as opressões subjetivas. A dignidade e o respeito entram em pauta.
É nesse sentido que Axel Honneth8 formulou as definições de identidade como agenda principal da luta por reconhecimento. Ao conceber a identidade a partir de uma configuração subjetiva, Honneth abrangeu a moralidade individual como eixo construtor da identidade coletiva. A elaboração de um autoreconhecimento do indivíduo levaria a um próximo reconhecimento social: o conhecimento de “como sou” impactaria o “eu” na vida social.
Assim, a questão do reconhecimento se torna peça fundamental para a participação política e para a ideia de representação. Os indivíduos, ao construírem suas próprias identidades, são reconhecidos em sua subjetividade. E é também assim que se constrói a noção do “outro igual”, ou seja, do outro que possui certa afinidade nas experiências também subjetivas.
É também a partir da emergência de um discurso sobre pautas identitárias que o “espaço de fala”, muitas vezes, se molda. Se o indivíduo somente reconhece o outro a partir das condições de reconhecimento recíproco, o próprio reconhecimento – assim como a representação política – também se configura como um “contrato de experiências”. A partir da reciprocidade de reconhecimento, o indivíduo tem a autorização para “falar em nome de”; bem como tem a autonomia quanto à vida social.
Isso significa dizer que o indivíduo, ao se autoreconhecer, reconhece o outro e lhe oferece um espaço de fala coletivo que o inclua. Ao reconhecer o outro a partir de uma identidade coletiva que o inclua, o indivíduo também dispõe ao outro a responsabilidade de representá-lo. A representação política, portanto, vai muito além de um “contrato de interesses”: margeia um vínculo subjetivo e identitário.
Para além da ocupação política e da tomada de poder representativo, a luta por representatividade política também passa por uma questão de reconhecimento de direitos e oportunidades. No contexto da busca de reafirmação de uma identidade coletiva, as políticas de redistribuição econômica e de reconhecimento devem estar consolidadas para a concepção da justiça.
Ademais, não se pode falar de “justiça” sem centralizar a noção de paridade de participação política. E é desse modo que a representação política se interliga a uma noção de distribuição de direitos e equidade social. Para Nancy Fraser9, a paridade da participação política envolve tanto a distribuição de recursos materiais quanto padrões institucionalizados de respeito e oportunidades. Nesse sentido:
“Fraser afirma que as lutas sociais contemporâneas têm apresentado uma forte tendência ao “fortalecimento de movimentos sociais comprometidos com a defesa de grupos historicamente injustiçados sob o ponto de vista cultural e simbólico” (LIMA, 2010, p. 8). Refere-se, principalmente, aos movimentos feministas, negros e lgbt’s, já existentes anteriormente, mas que se fortaleceram a partir da derrocada do sistema socialista soviético, quando assume, progressivamente, a bandeira da luta pelo reconhecimento da diferença.”. (OSTERNE, 2015)10
Nesse sentido, é possível analisar a representação política como um conjunto de experiências capaz de politizar as culturas e as lutas por reconhecimento. A justiça social incorpora a questão redistributiva, além de abranger as filosofias do reconhecimento e o status social. (OSTERNE, 2015). Sendo a participação política também uma questão de paridade social; e sendo a paridade social uma questão de justiça, é necessário compreender a justiça a partir de uma concepção tridimensional. A partir disso:
“A injustiça econômica passa por mudanças estruturais. […] Esse conjunto de elementos ou parte deles dependeria da “Redistribuição”. Por outro lado, a solução para a injustiça cultural exigiria mudanças culturais e simbólicas do tipo: reavaliação de identidades desprezadas, reconhecimento e valorização da diversidade cultural, ou, mais amplamente, alteração geral dos modelos sociais de representação. Tudo isso dependeria do Reconhecimento.”. (OSTERNE, 2015).
Por fim, é importante retratar que a globalização alterou os discursos simbólicos. Alterou também o modo como a justiça social se organiza. Assim, a justiça deve englobar as discussões sobre representação, bem como a compreensão de uma política de status e de questões de identidade, igualdades e diferenças. Ou seja, a integração das diferenças e o próprio reconhecimento valorativo-cultural destas diferenças devem agregar a versão de justiça social.
A representação política passa a ser, portanto, uma questão de direitos e oportunidades. Se o que determina uma representação política ‘saudável’ é a participação igual dos indivíduos na vida pública; as dimensões de reconhecimento, identitarismo e redistribuição podem auxiliar na abertura política de grupos “subalternizados” promovendo, portanto, uma representação política pautada na igualdade, no respeito à diversidade e na concepção de interesses sociais distintos.