A categoria “mulher” já foi pensada por diversas teorias durante a história moderna e contemporânea. Diante da possibilidade de se pensar o “ser mulher” como uma categoria que englobe a própria identificação do indivíduo, algumas questões se tornam importantes: o que é feminismo decolonial? O que é interseccionalidade? Como a dicotomia homem-mulher se revela como categorias impostas de forma violenta pela colonização? Quais as relações entre o feminismo decolonial e as correntes feministas contemporâneas?Moçambicanos impacientes tomam as ruas: o preço da incoerência política e governativa da Frelimo
Sobre o Conflito no Oriente Médio
O feminismo decolonial surgiu como uma forma de compreender a dominação europeia e seus processos históricos sob corpos sociais colonizados, principalmente, em relação a camadas rotuladas e violentadas. Esse movimento não somente é uma maneira de compreender e romper com as imposições neocoloniais realizadas durante os séculos XIX e XX, mas também uma forma de compreender e transgredir as imposições imperialistas existentes na atualidade. Por isso, o feminismo decolonial é um instrumento de grande valor para o feminismo latino-americano contemporâneo.
A necessidade de desenvolver uma posição constante de transgressão ao imperialismo contempla também a necessidade de observar, no feminismo decolonial, formas de se pensar gênero, raça e sexualidade para além de categorias colonizadoras. Para María Lugones (2014)1, o feminismo oferece ferramentas que permite à mulher compreender a opressão externa sobre si mesma e, ao mesmo tempo, transgredi-la:
“Descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis. É decretar uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida do social. Como tal, a descolonização do gênero localiza quem teoriza em meio a pessoas, em uma compreensão histórica, subjetiva/intersubjetiva da relação oprimir versus. resistir na intersecção de sistemas complexos de opressão. (LUGONES, 2014, p. 940).”
Lugones acredita que a imposição colonial se transformou aos poucos num modelo de normas que condenava os indivíduos que não se adequassem. Outro importante ponto é a imposição religiosa do cristianismo nos séculos XIX e XX: ações e pensamentos contrários a essa matriz eram brutalmente condenados. A sexualidade da mulher foi regrada e considerada um tabu. A imagem feminina foi associada ao diabólico e perverso. Deste modo, o cristianismo se normatizava através da dominação colonial que exterminava saberes e práticas contrárias aos padrões impostos:
“Assim, à medida que o cristianismo tornou-se o instrumento mais poderoso da missão de transformação, a normatividade que conectava gênero e civilização concentrou-se no apagamento das práticas comunitárias ecológicas, saberes de cultivo, de tecelagem, do cosmos, e não somente na mudança e no controle de práticas reprodutivas e sexuais. (LUGONES, 2014, p. 938)”
E como o conceito de interseccionalidade auxilia na ruptura imperialista? O conceito de interseccionalidade nasceu no feminismo negro do século XX, tendo como contexto histórico justamente os anos de independência de alguns países colonizados. O movimento surge como resposta de mulheres negras ao movimento sufragista e propunha “recortes” dentro do movimento feminista, considerando que nem todas as mulheres não sofrem um mesmo tipo de violência.
O que propõe o feminismo decolonial é justamente utilizar a intersseccionalidade para se pensar a categoria “mulher” como uma categoria imposta pela colonização para legitimar uma hierarquização. Uma vez que – para o imperialismo – “apenas civilizados são homens ou mulheres”, encontra-se no feminismo decolonial uma forma de resistência à violência e a possibilidade de superar a colonialidade do gênero. A ideia principal é a de tornar o feminismo mais inclusivo e plural.
Deste modo, pensar a intersecionalidade das opressões sofridas pelos inúmeros corpos femininos torna-se a maneira mais representativa de se debater e resistir a um sistema patriarcal, branco, heterossexual e europeu colonizador. A entrega do movimento a um campo de crítica e de constante busca pelo rompimento com as categorias dicotômicas colonizadas atribuídas ao gênero é de extrema importância para os debates atribuídos ao período descolonizador e para os debates contemporâneos.
“As mulheres negras, indígenas, não heterossexuais e pobres foram e são as que mais sofrem com as violências cotidianas e, também, são aquelas que têm seus trabalhos acadêmicos mais invisibilizados. É possível pensar que a produção de conhecimento crítico a partir das experiências situadas dessas mulheres, articulada a ação política, pode promover discursos outros que implicam numa prática política crítica e transformadora das suas realidades. (CURIEL, 2007, p.92).”2
A colonização dominou todo o sistema de representação, configurando ideologias definidas como algo de essência natural, especificamente a população negra, em especial as mulheres negras. Sendo assim, pode ser compreendida através de diversas formas de dominação e opressão definidas de maneiras dicotômicas e hierárquicas de gênero, orientação sexual, raça, classe social e etc. Essas desigualdades são heranças do período colonial que são comuns mesmo na atualidade.
A própria configuração do mundo colonial esteve, durante todo o tempo, composta na dicotomia e na sujeição da dicotomia, não somente em relação à história nativa, mas também em relação ao caráter “nativo” inferiorizado através do discurso científico. Nas metrópoles, o corpo feminino negro era objeto de exibição em espetáculos, seminários de anatomia e medicina, com estudos comparativos em etnologia que buscavam comprovar a sua inferioridade. Os signos da alteridade racial tornaram-se importantes na construção de um feminismo transgressivo.
María Lugones (2014) aponta para inúmeras dicotomias hierárquicas: o humano e o não humano, o homem e a mulher. Para a autora, ambas as dicotomias servem ao sistema capitalista e ocidentalizado. Um resultado da colonialidade de gênero ainda está presente no universo feminino e este se engloba com as questões construídas historicamente (como, por exemplo, as questões de raça e classe).
“Ver a colonialidade é ver a poderosa redução de seres humanos a animais, à inferiores por natureza, em uma compreensão esquizoide de realidade que dicotomiza humano de natureza, humano de não-humano, impondo assim uma ontologia e uma cosmologia que, em seu poder e constituição, indeferem a seres desumanizados toda humanidade, toda possibilidade de compreensão, toda possibilidade de comunicação humana. (LUGONES, 2014, p. 946).”
Visto de maneira unilateral, a colonização do gênero propôs uma noção de mulher que foi modificada diversas vezes para atender ao sistema. E isso torna ainda mais complexo o problema aqui apresentado: para além da teoria, descolonizar as noções de gênero deve ser uma práxis, sendo fundamental a mudança de conceitos. A descolonização de gênero deve ser compreendida subjetivamente e intersubjetivamente. Logo, é necessário que ocorra uma multiplicidade da nova lógica, com um aprofundamento na memória de povoação.
É fundamental realizar o “giro descolonial”, termo cunhado por Maldonado Torres (2008)3, com as multiplicidades de indagações sobre as construções históricas e sociais, mesmo que ainda não possua respostas satisfatórias para os problemas apresentados. A contemporaneidade é entroncada e, por isso, sempre é tempo de observarmos as dissiparidades coloniais na tentativa de construir novas cidadanias livres e releituras pautadas em uma geopolítica humanista, bem como em uma teoria feminista sólida.
“Nós partimos, ao contrário, do pressuposto de que a divisão internacional do trabalho entre centros e periferias, assim como a hierarquização étnico-racial das populações, formadas durante vários séculos de expansão colonial europeia, não se transformou significativamente com o fim do colonialismo e a formação dos Estados-nação na periferia. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 13).”4
Em um processo histórico, a colonização realizada pelo sistema capitalista não considerou o fato de que as regiões colonizadas já possuíam suas culturas, políticas, economias, religiões, relações com o cosmo, com a terra, com outros seres vivos, com o orgânico, entre outras que poderiam ser citadas. Enfim, a colonização não considerou, de modo geral, as diversidades de aspectos culturais existentes. Uma das formas de compreender o passado colonial é realizar o resgate de como eram os próprios significados culturais, as crenças e as práticas nativas.
É por isso que o feminismo latino-americano contemporâneo deve muito ao feminismo decolonial: compreender o passado colonial auxilia a transgredir o “neocolonialismo” presente. O feminismo decolonial atual busca desmistificar o imperialismo norte-americano e anular o controle midiático, político e estratégico que o país tem sobre os países em desenvolvimento. Também busca romper com as políticas de desigualdade impostas por países desenvolvidos e por instituições globais que alimentam tais negociações.
“Estudar e compreender os feminismos decoloniais, tão pouco conhecidos no Brasil ou, pelo menos no Sudeste, representa a valorização da produção de conhecimento e de uma prática política das mulheres do terceiro mundo. Pode ser uma valiosa oportunidade de compreendermos que nossas realidades têm muito mais em comum com as demais mulheres latino-americanas e caribenhas do que com as mulheres do norte global. (ARAUJO e MATTOS, 2017).”5
Pode-se dizer que o uso do próprio termo “interseccionalidade” foi uma importante “continuação atualizada” do feminismo decolonial clássico. Como preocupação do feminismo decolonial atual, a intersseccionalidade é um debate que abrange não somente classes e raças, mas também fenômenos excludentes: o “colorismo” (termo recém-estudado no movimento feminista), a sexualidade, o grau de escolaridade, a segregação urbana e a própria condição urbana de moradia/locomoção. Ou seja, a partir de três categorias dicotômicas clássicas (gênero, raça e classe), foi possível abrir novos debates de grande importância para a atualidade.
“Acredita-se que é nesse sentido que o ‘pós’ do pós-colonialismo significa atravessamento, impregnação ou proliferação de histórias e temporalidades. As relações verticais de poder, estabelecidas entre colonizadores e colonizados, foram descentradas ou deslocadas pela transversalidade das hierarquias de gênero, raça e posição social no interior das sociedades coloniais; um espaço intermédio de sobreposições identitárias e reconfigurações sucessivas de posicionamentos, interpretações e reinscrições. (BHABHA, 1988; HALL, 2009 apud JARDIM e CAVAS, 2017).”6
Portanto, vincular os debates sobre gênero, raça, classe, sexualidade e colonialidade na prática cotidiana e na produção de “teorias críticas” é necessário para uma resistência feminista mais plural e representativa. Nesse sentido, destacou-se aqui a importância da interseccionalidade e do feminismo decolonial para se pensar transformações nos feminismos contemporâneos, assim como para reinventar formas de resistência contra violências que transcenderam o tempo e se materializam em corpos que sempre foram empurrados para as margens da sociedade ocidental.78