No século que se passou, as extremidades das ideologias estavam em proeminência. Como um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos defendiam a democracia em suas fronteiras e conspiravam pelo totalitarismo de direita em seu quintal – a América Latina – em nome de impedir o alastramento de um “mal que corroía as fundações da civilização”: o comunismo da União Soviética. O resultado do conflito de interesses entre os capitalistas de Washington e os comunistas de Moscou? Ditaduras, guerras e genocídios. Junto de muitos dos outros ditadores da “Era dos Extremos” de Hobsbawm, Augusto Pinochet, o ditador do Chile, era um dos piores. Havia chegado ao poder com o Golpe de 1973 – que incluiu o bombardeio de La Moneda e o suicídio de Salvador Allende, o presidente que fora derrubado – e imediatamente deu início ao que seria uma das repressões mais violentas da América Latina.Moçambicanos impacientes tomam as ruas: o preço da incoerência política e governativa da Frelimo
Sobre o Conflito no Oriente Médio
A DINA e Pinochet
A Dirección de Inteligencia Nacional, conhecida como DINA ou “el monstro”, foi criada por Pinochet em 1974 e era um órgão de inteligência a serviço da repressão: incumbido da perseguição, tortura e extermínio de opositores e responsável por, no mínimo, 3 mil mortos e 40 mil torturados. Obedecendo somente ao ditador do Chile, a DINA torturou todas essas vítimas em centros de detenção como a Londres 38, Villa Grimaldi e o motivo da escrita deste artigo, a Colonia Dignidad.
A Colonia Dignidad é digna de assombro. Foi fundada em 1961 por Paul Schäfer – um alemão, médico e ex-nazista que havia fugido da Alemanha por acusações de pedofilia – nos arredores da cidade de Parral, no sul do Chile, e nomeada como a Sociedad Benefactora e Educacional Dignidad, cujo objetivo era dar “suporte à juventude e a infância desvalida”. Um terreno de 180km² havia sido cedido para a construção do projeto mediante uma solicitação de Schäfer à Embaixada da Alemanha no Chile, e uma vez em suas terras, ele criou um “Estado dentro do Estado”: um mundo paralelo e um domínio próprio, no qual ele era a autoridade absoluta e seus desígnios, a lei. Em pouco tempo, a benfeitoria de Schäfer se tornou um inferno.
Uma colônia de horrores
Para entender os horrores de Dignidad, é necessário conhecer o seu criador. Paul Schäfer Schneider nasceu em 1921 no interior da Alemanha, e ainda na adolescência, ingressou na Juventude Hitlerista e foi cooptado pela Wehrmacht para atuar como um médico na ocupação da França, quando foi promovido a coronel. Porém, os aliados venceram a guerra e Schäfer, para escapar das punições, se escondeu no interior da Alemanha sob o disfarce de pregador. Carismático, muitas vezes era visto carregando um violão com o qual espalhava sua palavra de salvação através da abstinência sexual, assim como o anticomunismo e o antisemitismo.1
Derrotados na Segunda Guerra Mundial, ocupados por estrangeiros, divididos, envergonhados e humilhados, os alemães estavam em ruínas e sem orientação. Em tal estado, quando se é um pregador dotado de carisma, reunir um secto de seguidores se torna mais fácil, e foi o que Schäfer fez. A sua vida é obscura nos anos em que durou a sua pregação. O que se sabe é que, no começo da década de 60, ele foi acusado de abusar sexualmente de duas crianças e, por medo das punições e de ter seu passado como nazista vindo a público, fugiu para o Chile com uns trezentos de seus seguidores, tendo em mente a chance de estabelecer uma comunidade ao modelo das aldeias dos tempos bíblicos, longe do comunismo de Moscou e das tentações de Satanás.
A Colonia Dignidad, em pouco tempo, se mostrou como o que era de fato: um campo de concentração. Reclusa em um mundo próprio, as leis do Chile não se aplicavam à comunidade de Schäfer, continuamente rodeada por uma rede de cercas elétricas e um sistema de vigilância que incluía torres equipadas com comunicação e refletores, sensores de movimento e câmeras que se mesclavam com as pedras e árvores, somava-se a isso os guardas que, vestindo os uniformes da antiga Wehrmacht, tinham armas de porte militar e cães. A Dignidad se tornou uma fortaleza, e dentro dela havia um hospital, escola para as crianças, dormitórios, fábricas de mel, mineração, pistas de pouso, além de uma rede de túneis, bunkers e outros bens – o que não havia era o espaço para a desobediência e a possibilidade de sair.2
Por dentro dos portões
Na comunidade, tudo era compartilhado e público, incluindo as famílias. Schäfer era um fanático, e como tal, acreditava que as mulheres eram um “objeto de pecado” e pregava a oposição ao matrimônio e a estrutura familiar, o que, além de ser um resultado de suas crenças pessoais, era um método de controle. Quando um casal tinha filhos dentro das terras de Dignidad, a criança era arrancada dos pais e criada em uma enfermaria e nunca saberia quem era o seu pai, sua mãe ou seus irmãos. Todos os adultos eram chamados de “tios e tias” e Schäfer, de “tio eterno”. No momento em que completavam os sete anos de idade, as crianças entravam num regime de trabalho que ia da manhã à noite, sem dias de descanso e sem qualquer tipo de remuneração, viravam escravas.
O controle ao qual essa estrutura era subserviente se apresentava, principalmente, através das punições. Por exemplo, se uma criança tivesse o azar de “pecar” – e do ponto de vista de Schäfer, o pecado era algo muito subjetivo – ela teria alguns caminhos: ou ela seria posta para se confessar ao “tio eterno” em frente de todos os outros membros da Colonia e punida com castigos corporais, em seguida; ou poderia ser obrigada a sentar-se à mesa de refeições como todos os outros, mas sendo a única que não poderia comer e poderia, ainda, ser torturada. O mesmo poderia se aplicar aos adultos. O “tio eterno” convencia a todos, ao dizer que sabia o que era pecado, que tinha que punir, mas que iria perdoá-los, mesmo sendo pecaminosos. É um sistema de toxicidade que levava as vítimas a verem o seu algoz como um carrasco e um redentor, a quem deveriam temer e ter gratidão. E era muito pior para as crianças que, sem uma família e qualquer tipo de rede de apoio, não tinham a quem ir por socorro, mesmo quando eram as escolhidas para satisfazer os desejos de Schäfer em sua cama.3
A Colonia Dignidad é surpreendente e estarrecedora: quanto mais fundo se cava, mais horrorizado e enojado se fica. O ex-nazista está morto, faleceu na cadeia em 2010, enquanto respondia pelo estupro de 25 crianças, o que já é um crime de dar náuseas, mas ainda não é próximo do real. Durante seus 30 anos de gestão da comunidade, o “tio eterno” chegava a abusar de crianças até quatro vezes ao dia. E, ainda, se o estupro provocasse algum tipo de resistência na vítima, ela seria enviada para um prédio nos arredores e passaria por experimentos para reprimir a sua libido. Como faziam isso? Werner Schmidtke, um ex-colono, em uma entrevista cedida a Al Jazeera, tem a resposta:
[…] alguns minutos depois, outra pessoa entrou na sala. Ela abaixou as nossas calças e nos deixou nus. Eu escutava gritos altos de um outro menino. E então eu descobri o motivo. Era a minha vez de receber o eletrochoque. O eletrochoque havia sido trazido da Alemanha, e lá, era usado para fazer o gado andar. Era muito forte. Eles davam choques nas partes mais frágeis do corpo: na cabeça e […] nos testículos. (Al Jazeera, 2013)
A escravidão era outra das mazelas do lugar, envolvendo, diariamente, 16 horas de trabalho no campo, sem remuneração e sem direito a descanso, seja para as crianças ou para os adultos. Como era de praxe, não havia a chance de parar, de reclamar ou de se sentir exausto, fizesse isso e seria punido. Era proibida a amizade entre homens e mulheres, os segredos e os risos, e só se podia obedecer. Embora o inferno se mostrasse nas terras da Colonia, o mundo externo a via com bons olhos, pois tudo o que as pessoas que circundavam os muros do tártaro viam – ou tinham a permissão de ver – era uma comunidade feliz, coletivista e cristã, na qual podiam confiar as suas crianças para a escola ou receber algum atendimento médico. O que os chilenos deveriam temer, além de tudo o que já foi dito, eram as relações de Dignidad com a DINA.
A DINA e a colônia
Através da DINA, os túneis e os prédios da Colonia Dignidad tiveram uma outra “razão de ser” que não fosse fazer o inferno da vida de seus colonos: torturar e sumir com os corpos dos opositores de Pinochet. A Dirección de Inteligencia Nacional, como eu disse no começo deste texto, era o “el monstro” que tinha atribuições que iam além das estabelecidas e, inclusive, podendo fazer a caça de militantes de oposição para além das fronteiras do Chile e torturá-los em mais de mil centros de extermínio e/ou concentração espalhados pelo país.
Em 1974, já se sabia que os homens de Contrera – chefe da DINA – e Pinochet tinham uma relação “cordial” com os chefes da comunidade e seus asseclas, e isso se dava pelo alinhamento ideológico de ambas as partes: eram anticomunistas, eram de extrema-direita e, como se pode dizer, as ditaduras da América do Sul tinham uma certa predileção com os nazistas. Visitados por Contrera e Pinochet, Schäfer exibiu seu arsenal de guerra: que hoje se sabe que incluíam pistolas, granadas, metralhadoras e, acredite se quiser, mísseis de superfície-ar e uma arma de destruição em massa, o gás sarin (abro um parênteses para dizer que, quanto ao gás, há indícios que se seja parte do Projeto Andrea, um plano do Chile e vizinhos para eliminar os opositores usando armas químicas).
Considerado como um dos mais secretos espaços de tortura, logo foram estabelecidos os mecanismos nos quais a Colonia operaria: no treinamento de agentes da DINA, como uma escola da prática de tortura e um centro de comunicação. Como disseram Helvia e Sthedile, Schäfer contava com muita tecnologia e organizou um centro que conectava os principais postos da DINA, que incluíam o seu quartel-general, a Escola Nacional de Inteligência e a Vila Grimaldi (HELVIA e STHEDILE, 2016 apud MATTOS, 2019). A Dignidad era central e poderosíssima, e isso assusta, mas os relatos das torturas que lá aconteciam, são dignos de pesadelos. São duas descrições, a primeira de Luis Peebles, um ex-prisioneiro e torturado na Colonia, e a segunda de um ex-soldado chileno, responsável por fazer os transportes dos prisioneiros.
[…] os métodos de se colocar os eletrodos era extraordinariamente meticuloso. Eles os espalhavam por todo o meu corpo: por dentro das unhas, nas mãos, nos meus pés e genitais. Os colocavam por dentro do meu pênis, ânus, nariz e boca. (tradução nossa) (Al Jazeera, 2013)
Perturbador o suficiente, este relato pode gerar ânsia de vômito se o leitor tiver uma imaginação fértil. O segundo, no entanto, releva que os métodos de experimentação nazistas estavam muito vivos nas torturas das quais Schäfer tomava parte – o que é corroborado pelas tentativas de repressão de libido, também através de eletrochoque, feitas em crianças.
“[…] Por que eles tinham o trabalho de levar os prisioneiros para a Colônia Dignidad? Talvez fosse porque os métodos de tortura fossem mais científicos, as pessoas diziam que eles faziam coisas macabras, que arrancavam córneas e olhos. Eu nunca vi, mas esses eram os rumores. Mas eu sei que eles faziam experimentos com os prisioneiros, descobrir o quanto de dor que eles conseguiam aguentar, com a ajuda de alguns brasileiros, porque tinha lá quem falasse português (tradução nossa) (Al Jazeera, 2013)”
Quantos corpos foram amontoados na Colonia? Não se sabe. As informações são escassas e o que se tem são oito fossas comuns na área, onde se enterravam os mortos, e o fato de que, em 1977, estavam sendo feitos de prisioneiros um total de 112 pessoas, incluindo antigos líderes da Unidad Popular, o partido de Allende, boa parte desta centena de presos continuam desaparecidos, sem respostas e suas famílias, sem o direito de enterrar os seus mortos. O que é o caso de um cientista dos Estados Unidos, Boris Weisfeiler, que passeava pelos campos aos arredores de Parral, quando foi pego pela milícia da Colonia, interrogado e morto e, por anos, a reposta das autoridades chilenas foi de que ele teria se afogado num rio. Não é novidade, mas os desaparecidos e as atrocidades dos fascismos e das ditaduras vão se acumulando, e as repostas e a justiça, nem tanto.
Conclusão
Antes de concluir este longo artigo, quero falar (muito brevemente) sobre um poema de Martin Niemöller, que é conhecido no Brasil como “E não sobrou ninguém…”, e diz:
“Primeiro eles levaram os socialistas e eu não protestei, porque eu não era um socialista. Depois levaram os sindicalistas, e eu não protestei, porque não era um sindicalista. Depois eles vieram pelos judeus, e eu não protestei, porque não era um judeu. Então eles vieram por mim, e já não havia ninguém para protestar por mim.”
Este poema carrega consigo um apelo a liberdade e a proteção dos direitos dos cidadãos, violados pela Colonia Dignidad e sistematicamente, esmagados pelos fascismos. O inferno que foi a Dignidad já não existe, e hoje é um resort mantido pelos colonos que não quiseram – ou não conseguiram – ir embora. O regime de Pinochet também é história. Caíram também a União Soviética e a Guerra Fria, o nazismo e as ditaduras da América Latina. Mas não se enganem, porque podem voltar, tudo pode se repetir e novas colônias podem surgir. O poema de Niemöller é um sonoro grito, um “não” ao silêncio quando se está frente à barbárie, e não se engane, pois estamos frente a ela, portanto, gritem e esperneiem, façam-se ouvir.4567