O histórico dos hospícios e manicômios para atendimento aos “alienados” – como se costumava dizer nos anos de 1890 a 1930 – no Brasil era, e ainda é, problemático. Não é necessário se aprofundar muito para descobrir, por exemplo, sobre o “campo de concentração” de Barbacena, um “cemitério” para cerca de 60 mil pessoas. Hoje, o Hospital Colônia de Barbacena é um museu e um recanto para tratar dos sobreviventes com o respeito e o cuidado que por tantos anos lhes foram negados, mas o HCB não foi o único a matar no Brasil, existiram outros, como o Manicômio Judiciário de Juquery com os seus “ignorados”, localizado em Franco da Rocha, em São Paulo.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Idealizado por Franco da Rocha e fundado em 1934, o objetivo do Manicômio de Juquery era claro: suprir a demanda da alocação de presos com transtornos psiquiátricos. O manicômio tinha a estrutura de um presídio de segurança máxima e cada canto do complexo era vigiado. Tinham-se as “solitárias” – celas individuais para os internos mais agressivos – e os espaços coletivos, assim como os setores administrativos, tudo circundado por muros e torres de vigilância (COSTA, 2017 apud TAVOLARO, 2002 e SILVA, 1935)1. Era um hospício-prisão, por assim dizer, e isto é parte crucial da história dos “ignorados” do Juquery.
Tal qual o hospício de Barbacena, o manicômio de Franco da Rocha era cruel. Pairava ali o desrespeito para com os internos, a violência não era só física, era moral. Ora, além de serem privados de sua subjetividade e individualidade, eram torturados e mortos. No artigo “A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intramuros na ditadura cívico-militar” de Douglas Sakaguchi e João Marcolan, seis ex-funcionários foram entrevistados e relataram as cenas que presenciaram enquanto trabalhavam no local. As descrições seguem abaixo:
[…] o cheiro era horrível demais, tinha lugares que elas vomitavam, morria muita gente por descuido […] de manhã ia ver quantos morreu, morria muitos (SAKAGUCHI e MARCOLAN, 2016) 2
Um outro relato é sobre o eletrochoque, um dos tratamentos psiquiátricos reservados aos pacientes do manicômio:
[…] teve uma paciente que tava totalmente transtornada, então ela ficava dia e noite gritando […] Então chamaram uma pessoa pra fazer eletrochoque. Fizeram eletrochoque, nesse dia fiquei besta (pausa) fizeram eletrochoque nela que saía sangue assim da boca dela, os dentes dela moeu, era violento, e fizeram uma duas ou três vezes no mesmo dia (ibid., 2016)
A história deste manicômio é particular por ser intimamente ligada ao regime civil-militar que passou a sobrecarregar o instituto, tanto que o número de internados saltou de 7.099 em 1957, para 14.438 em 1968 (ibid., 2016), resultando em uma superlotação que chegou a ser de quatro pacientes por leito, o que piorou o quadro de maus-tratos preexistente. Como se não fosse ruim o suficiente, o hospício-prisão, entre 1964 e 1985, ganhou uma nova atribuição: a de receber presos políticos, os tais “ignorados”.
Os “ignorados” citados no título deste artigo eram os pacientes que chegavam ao manicômio sem nome ou documentos, despidos de qualquer identificação e nomeados como ignorado nº 1, nº 2 e tantos mais. Quem os traziam era a polícia, e eles sempre estavam marcados por hematomas e cortes que, muito provavelmente, eram resultados de uma sessão no DOPS ou DOI-CODI mais próximo. Uma vez lá, ficavam nos espaços reservados aos mais perigosos e recebiam os piores tratamentos.
[…] vinha sem nome, polícia trazia, de repente no dia seguinte tava morto […] hemorragia interna, era o diagnóstico que os médicos davam de causa morte, é. Não existia investigação, morreu, acabou […] eles não tinham identificação, não tinha nome, eles tinham um número, ignorado número tal (ibid., 2016)
Em 1992, Roberto Gouveia (PT) presidia uma comissão na Alesp, para investigar os mortos do Juquery. Nesse mesmo ano, eles receberam dois livros que continham os óbitos dos internos entre 1965 e 1989. Por algum motivo, o motorista que entregou estes documentos e membros da comissão passaram a receber ameaças por telefone. Certamente, havia quem quisesse esconder estes dados, e isto se torna mais evidente porque, em 1978, boa parte do arquivo do complexo se queimou num incêndio causado por um “acesso de loucura de um paciente”. Com base nestes dois livros, os parlamentares chegaram à conclusão de que, em todo o tempo de existência do complexo, ocorreram 61 mil óbitos. Deste número, diz-se que 33.733 estavam enterrados no cemitério do hospício, onde “[…] haveria cerca de 7.000 adolescentes, crianças e natimortos, além de um número grande de membros amputados, como pernas e braços (BIANCARELLI, 1998)”3. Esses mortos se somam com a ossada de Perus, uma vala clandestina a 13 quilômetros do manicômio, descanso para 1.047 ossadas, entre as quais se encontram restos de militantes de esquerda presos pela repressão.
No ano passado, em 2019, duas coisas são dignas de nota em relação ao local: a primeira é positiva, de que o manicômio é o lar de 57 pacientes e ao que tudo indica, eles recebem o tratamento e o cuidado que necessitam para ter um fim de vida digno; a segunda é sobre o encerramento das atividades de investigação sobre a ossada de Perus, ordenado por Bolsonaro. Encerrar as pesquisas sobre os desaparecidos, os grupos de extermínio ou os mortos do complexo é uma ferida e uma afronta à memória de tantas vidas perdidas e a do nosso país4.
O Juquery, o hospício de Barbacena e tantos outros eventos cruéis são uma parte de nossa história que é digna de vergonha, no entanto, para que não se repita, precisa ser memorada. Os massacres e holocaustos do passado são as marcas de uma era de obscurantismo passível de retornar. Quando se lança o que não se quer (ou não se deve) lembrar num limbo, o que isso causa é o não-aprendizado, e se não aprendemos, cometemos os mesmos erros.