As duas tragédias: a do Hospital Colônia de Barbacena, negligenciada e desconhecida, e a dos campos de Auschwitz, que fala por si só, são diferentes e não devem ser comparadas sem que se tomem cuidados ao fazê-lo, visto que, não obstante existam semelhanças entres ambas, os contextos, período histórico, dimensão e impacto divergem. Ciente disso, proponho-me a escrever sobre como e porquê o Colônia e Auschwitz são parecidos e, para tal, faz-se necessário explicar de modo contundente o que aconteceu num e noutro, tendo como foco os eventos que tomaram lugar no HCB – sigla para Hospital Colônia de Barbacena.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
O Hospital Colônia de Barbacena é criado pela força da lei de nº 290 do Estado de Minas Gerais como um hospital para alienados, e surge em 1911 com o nome de “colônia”. Sua origem se relaciona com a disputa entre Belo Horizonte e Barbacena pelo título de capital do estado, esta que, derrotada, recebe um manicômio como um prêmio de consolação: um hospital para atender a demanda de atendimento psiquiátrico, de cunho higienista, para a crescente massa de acometidos por transtornos mentais.
“A ideia de uma compensação pela perda da possibilidade de ser capital do Estado advém do fato de, naquele momento, o hospício ser considerado uma importante instituição pública e, nesse caso, a primeira do gênero em Minas Gerais […] (KYRILLOS e DUNKER, 2017)”
Nota-se que a lei nº 2901 já previa em seu corpo a vigilância aos internados e disponibilidade de eletrochoque para o tratamento, como fica claro no terceiro artigo desta: “No prédio que for destinado ao hospício haverá, além das acomodações precisas, um pavilhão para observação dos indivíduos suspeitos, um gabinete eletro-terápico […] (BRASIL, 1900)”. Na data em escrevo, corroborado pela própria palavra da então Assembleia Legislativa de Minas Gerais, afirmo que o propósito e a causa que o asilo serviu foi a de vigiar, docilizar e controlar – e isto é desde seu estado embrionário. Não era um hospital, tampouco um órgão que trataria dos loucos com o objetivo de curá-los ou de reinseri-los na sociedade, não era nada que não um depósito para se desfazer dos indesejáveis, estando eles mentalmente doentes ou não.
Existem fontes de denúncia contra as atrocidades do lugar desde os meados de sua existência como espaço de extermínio, e tratarei de três delas aqui: a reportagem de José Franco e Luiz Alfredo pelo Cruzeiro em 19612; a fonte mais importante, “Holocausto brasileiro”, o livro-denúncia de Daniela Arbex que foi publicado em 20133; e por último, “Em nome da razão”4, um documentário dirigido em 1979 por Helvécio Ratton, que descreveu o horror com sons e fala, das quais eu destaco sua narrativa, a qual considero esclarecedora no que infere a natureza do hospício:
“[…] o hospital psiquiátrico funciona como um depósito, para cá vem os improdutivos de uma maneira geral, os inadaptados, os indesejáveis e os desafetos, todos aqueles que por um ou outro caminho se desviam daquilo que chamamos (de)normalidade. Através do hospício, a sociedade exclui os que não se adaptam num sistema baseado na competição (EM …, 1979)”
As vítimas, cujas vozes encontraram um eco na câmera de Ratton, vinham de todas as partes do país – num trem estigmatizado como “dos doidos” – e aportavam na Estação Bias Fortes. Chegavam como gente, maltratados, mas gente, e lá perdiam seus pertences e eram vestidos com o “azulão” – o uniforme dos internos, embora houvessem muitos que circulavam nus. Daí à frente, perderiam muitas das coisas que pensamos como essenciais: contato com o mundo, pertences pelos quais temos afeto, núcleo familiar, nomes e documentos, o que era parte de um processo definido, ao qual Erving Goffman deu um nome de “mortificação”, porque ao privar um indivíduo daquilo que o faz um humano como conhecemos, ele perde sua própria individualidade. O hospital tinha muros enormes para separar o mundo externo do universo isolado no qual sobreviviam os pacientes e deixava ao ócio absoluto todos os que lá estavam. Uma vez lá, os internos não tinham mais família, convívio em sociedade, trabalho, perdia-se tudo e sobrava algo como uma casca, que não fala, não age, não vive.
Para complementar a mortificação, a estrutura e tratamento para com os doentes eram quase análogas as dos judeus e outras vítimas do nazismo em seus campos infames, e é, em grande parte, graças a Daniela Arbex que o espetáculo de horrores foi exposto. Suas constatações assustam: por exemplo, o saldo de vítimas fatais foi de 60.000 pessoas cujos corpos foram vendidos para faculdades de medicina. Não por menos, Basaglia disse após visitar o HCB: “[…] estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta (ARBEX, 2013)”.
O que Arbex disse sobre a vida no hospício está nesta lista:
- num complexo com duzentos leitos, haviam cinco mil;
- durante os dias de frio, os internos se amontoavam uns nos outros para conseguir calor e não era incomum que os que dormissem por baixo acordassem mortos;
- torturas eram rotineiras, como os eletrochoques – descargas elétricas na cabeça para acalmar os internos – que, muitas vezes, eram aplicados seguidamente e matavam;
- morriam cerca de 3 a 16 pessoas por dia;
- a comida era triturada, intragável e repulsiva, e os prisioneiros do lugar eram obrigados a comer com as mãos e bocas, tal qual cães ou porcos, e a bebida era o esgoto;
- abuso sexual era constante, vide aqui que as mulheres se cobriam de fezes humanas para evitar que qualquer homem, interno ou funcionário, se aproximasse, e mesmo quando o sexo era consensual, acontecia em público;
- suas camas eram de palha que, recheadas de ratos e baratas, tornava as noites de sono extremamente desconfortáveis;
- frequentemente eram levados para trabalhos forçados;
E para corroborar tudo o que foi dito acima, seguem as palavras com as quais José Franco inicia o artigo “Sucursal do inferno” em maio de 1961, no Cruzeiro – então um dos maiores jornais do país – que, acompanhado pelas fotos de Luiz Alfredo, é uma denúncia das condições do HCB.
“Chorando compulsivamente, uma senhora caiu de joelhos em pleno gabinete, a implorar ao Secretário da Saúde de Minas Gerais, numa súplica comovente: – Doutor, pelo amor de Deus, não mande minha mãe para Barbacena não, doutor. Conceda-me essa graça, pelo amor de Deus, doutor! […] Quando aquela senhora suplicou ao Secretário da Saúde, ela o fez com o justo receio de perder para sempre a sua mãe, acometida de debilidade mental. […] Muito mais do que se poderia supor, as sombrias paredes do Hospital-Colônia escondem, no silêncio de Barbacena, um campo de concentração nos moldes nazistas, onde criaturas humanas vivem e morrem como animais, no mais sórdido abandono. (FRANCO, 1961)”
Por fim, as origens das razões pelas quais se normalizou o envio de indigentes para o limbo pode ser descrita da seguinte forma, leia devagar e atentamente: quando observado com calma, nota-se crescimento das cidades no Brasil e das interações sociais por conseguinte – isto nos fins do século XIX e início do XX – e isso é somado aos preconceitos latentes de uma sociedade racista que mal havia libertado, formalmente, sua população escravizada; esta sociedade sofria com doenças, um péssimo saneamento, criminalidade alta, indigentes e muita pobreza e demais complicações; nesta época vigorava o higienismo social e este tratava as doenças como um fenômeno social e, se o é e ao ser aplicado no Brasil, irá se ter um resultado simples: de que, se as doenças são um fenômeno social, então problemas de origem social também são doenças e se deve tratar disto a partir da sua fonte: os ladrões, pedintes, órfãos, capoeiristas, bêbados, e todas estas condições convergiam para a população pobre; logo, é justificável enviar para muito longe todas estas pessoas – e o Colônia servia para este fim.
Deixando de lado, por enquanto, o HCB, discutiremos sobre a estrutura dos campos de Auschwitz-Bikernau e, para tanto, faz-se útil uma lição de história: o Konzentrationslager Auschwitz é o nome de um dos mais conhecidos campos de extermínio empregados por Hitler durante a Segunda Guerra Mundial para liquidar os judeus, homossexuais, ciganos, comunistas e outros grupos no que ficou conhecido como o Holocausto. Fundado na cidade polaca de Oświęcim, recém conquistada pelos alemães e renomeada como Auschwitz, o complexo recebeu a primeira leva de prisioneiros – presos polacos – em 14 de Julho de 1940. Era dividido em três grandes partes e diversos outros subcampos – cerca de 47 em 1943 – e, em 1942, passou a ser o destino derradeiro de milhares de pessoas, queimadas em câmaras de gás assim que chegavam por serem consideradas inaptas para o trabalho forçado. Entre a primeira leva de prisioneiros e a chegada dos soviéticos em 27 de Janeiro de 1945 se passaram 1.658 dias, nos quais mais de um milhão de humanos perderam suas vidas, uma média aritmética de 667 assassinatos diários.5
As condições, como é de se imaginar, eram desumanas:
“[…] superlotados, os últimos barracões construídos eram cabanas de pedra expostas e frias, ao invés de beliches de madeira os prisioneiros dormiam em caixas de alvenaria de pedra. Os tecidos usados para aquecer os prisioneiros estavam cobertos de poeira e sujeira, geralmente também com excrementos, já que muitos prisioneiros sofriam de diarreia constante. (ALMEIDA, 2016)”6
E ainda: “os cadáveres que eram diariamente colocados em depósitos para posterior incineração nos fornos crematórios eram roídos por ratos, que eventualmente também atacava prisioneiros e transmitia doenças. (ALMEIDA, 2016)”. Seguindo:
“[…] os prisioneiros, além de estarem susceptíveis a enfermidades nutricionais e infecciosas relacionadas às péssimas condições de alimentação e higiene, também desenvolviam transtornos mentais durante o período em Auschwitz e mesmo posteriormente, quando em liberdade. São descritos sintomas de inanição psicossomática, distúrbios de personalidade e adaptação, quadros depressivos e sintomas orgânicos na chamada Síndrome do Campo de Concentração ( ALMEIDA, 2016 apud. RYN, 1990)”
Por fim, tal qual o hospício de Barbacena, o campo de concentração de Auschwitz segregou e exterminou uma população indesejada, mandou-as para longe dos centros e dos olhos, as isolou e as destruiu de modo sistemático. Matar os judeus e os outros alvos dos nazistas era o objetivo último dos campos, e o não era no HCB, este tinha o fim de curar indivíduos que sofriam de transtornos mentais, a questão é que, ora os que enviavam pacientes para lá desejavam eliminar ou fazê-lo desaparecer, ou não tinham conhecimento do que se dava por dentro dos muros, e além disso, as condições de higiene, tratamento e isolamento eram os responsáveis pelos óbitos – não descartando os casos de tortura ou assassinato proposital, mas esses não eram a maioria.
Em suma, Auschwitz e o Hospital-colônia de Barbacena matavam os seus, no entanto, Auschwitz o fazia por ordens diretas e com um projeto para eliminar uma determinada população com determinadas características, o HCB o fazia por negligência, descuidado e falta de amparo. Hannah Arendt disse em 19897 em “Origens do Totalitarismo” que: “[…] o verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, ficam mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento (ARENDT, 1989, p. 493)” e ainda “[…] como se o que sucedesse com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura, brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte, antes de admiti-las na paz eterna (ARENDT, 1989, p. 496)”, nos dois casos, suas palavras são afiadas e falam por si mesmas, porque, e por último, a maior semelhança entre ambos é o horror humano, indescritível e impalpável, e uma das maiores diferenças é o modo que os vivos lidam com as memórias que herdaram, afinal, não vejo lições sobre o “holocausto brasileiro” em livros escolares e veja lá no saber comum.8910