As gramáticas políticas são instrumentos analíticos capazes de padronizar ações que permeiam a realidade social. Edson Nunes, em sua obra “A Gramática Política do Brasil”, rompe com as análises dicotômicas sobre a política brasileira e desenha quatro tipos de gramáticas: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
O Clientelismo – a primeira gramática aqui analisada – vigora no Brasil através de relações patriarcais e trocas generalizadas com uma expectativa de proteção ou retornos futuros por parte do cliente. Na sociedade brasileira, “a lógica da troca generalizada é transferida para associações, instituições políticas, agências públicas, partidos políticos, cliques, facções.” (NUNES, 2010)1. Sendo assim, as instituições formais do Estado e a própria burocracia estão impregnadas de personalismo e relações de autoridade pessoal.
O Clientelismo já se consolidava no país durante a República Velha. A prática clientelista brasileira foi originalmente associada ao meio rural, sendo definida pelo favoritismo que caracteriza as relações pessoais e compromissos extralegais entre patrons e “clientes”. Possuía como foco uma instituição familiar extensa de “parentesco fictício” que mantinha a produção e o consumo. Entretanto, essa gramática se atualizou e vigorou durante toda a história do Brasil. Assim, segundo Nunes (2010):
“O clientelismo se manteve forte no decorrer de períodos democráticos, não definhou durante o período do autoritarismo, não foi extinto pela industrialização e não mostrou sinais de fraqueza no decorrer da abertura política.”.
Pode-se notar que o clientelismo também esteve presente durante a Era Vargas (1930-1945). Nesse período o Brasil se mostrou uma sociedade intermediária. O clientelismo foi nacionalizado através da manutenção da velha oligarquia no poder como base de apoio do governo varguista: na estrutura sindical, nos ministérios e nos órgãos públicos não insulados.
A Era Vargas trouxe um “State Building” no país, caracterizado pelo grande desenvolvimento e modernização da economia brasileira. As instituições e procedimentos convencionados cresceram. A “formação” de um Estado nacional se uniu à necessidade de construir uma identidade brasileira autêntica. Contudo, nada foi capaz de barrar a herança clientelista.
A Revolução de 1930 ocorreu devido a dois processos de ordens política e econômica. Na ordem política, a base de apoio de campanha à presidência de outros partidos se encontrava altamente fragmentada. Na ordem econômica, a Crise de 1929 se alastrava no Brasil impactando a economia agroexportadora. Para a política varguista, era necessária uma centralização política radical com implementação em um ritmo específico.
Essa centralização – justificada pelo combate ao “insolidarismo” brasileiro e pela criação de uma sociedade com valores compartilhados – retirava a autonomia política dos estados e municípios. O Estado Novo intensificou o poder executivo federal que, por sua vez, foi altamente personificado na figura do presidente. Nesse sentido, Getúlio Vargas passou a operar com uma lógica patriarcalista através de políticas sociais.
O corporativismo também foi uma gramática presente no Brasil no período de 1930 a 1945, funcionando sob um sistema de representação de interesses específicos e defendendo prerrogativas de corporações (grupos profissionais que fazem pactos não competitivos e hierárquicos). “É um mecanismo que serve ao propósito de absorver de forma antecipada o conflito político através da incorporação e da organização do trabalho.”. (NUNES, 2010). Como gramática, o corporativismo busca certa racionalidade e organização, mas inibe a existência de grupos de interesses autônomos.
A partir do início do século XX, há uma aderência por parte do Brasil ao Positivismo Comtiano e ao Integralismo como solução para a manutenção da ordem e do progresso. Durante a Era Vargas, o corporativismo brasileiro foi caracterizado por grupos profissionais dependentes e infiltrados nas instituições políticas. O Estado sempre esteve presente na organização de interesses corporativos, mesmo mantendo seu interesse estabelecido. O “Nacional Desenvolvimentismo” institucionalizou a gramática do corporativismo: gerou renda e criou diversas instituições corporativas (Ministério do Trabalho, Justiça do Trabalho, institutos de previdência social e Consolidação das Leis Trabalhistas).
Através da implementação de uma estrutura sindical urbana, o corporativismo se tornou um meio de criação de valores compartilhados pela sociedade brasileira. Era necessário criar vínculos entre os indivíduos, sobretudo vínculos profissionais. De fato, a solidariedade social almejada não foi estabelecida, mas as organizações corporativas funcionaram como poderosos instrumentos de controle. As práticas corporativas da Era Vargas contribuíram ainda mais para a nacionalização do clientelismo.
Certamente, a Era Vargas também utilizou a gramática política do Insulamento Burocrático a partir do recrutamento por sistema de habilidades e oferta de uma reforma administrativa. A modernização do aparelho de Estado, a criação de empresas estatais (Vale, CSN, etc.) e autarquias carregadas de pessoal técnico criavam nichos especializados no aparato estatal.
Ao mesmo tempo em que apresentava uma radical centralização do poder, a Era Vargas apresentava certo grau de racionalização e padronização de atividades. Certa tecnocracia isolada do mercado político resguardava a nação , mesmo que a prática não fosse uma atividade apolítica:
“O insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público e de outras organizações intermediárias. […] significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel.”. (NUNES, 2010).
É preciso retratar aqui que o processo de insulamento burocrático pode ser exercido com uma grande variação de intensidade. Da mesma forma, nem sempre o insulamento prevalece com o passar do tempo. A intensidade e a durabilidade de um insulamento varia de acordo com a estrutura social atribuída e da instituição. “O ‘desinsulamento’ pode ocorrer porque o núcleo técnico não requer proteção quando o ambiente operativo é analisável, previsível e menos incerto.”. (NUNES, 2010).
Em 1937, uma nova agência altamente insulada foi inaugurada. O DASP (Departamento de Administração do Serviço Público) foi centro de um novo aparato estatal e possuía critérios objetivos para a seleção de pessoal. A agência foi instituída para planejar políticas públicas e controlar a eficiência destas. Nunes (2010) retrata o DASP como um “organismo paradoxal” por possuir “o papel de conceber e analisar criticamente o regime autoritário” enquanto tentava racionalizar a administração pública por meio de um “Universalismo de Procedimentos”.
Para o autor, o Universalismo de Procedimentos pode ser definido como a adoção de critérios, economia de mercado, regras e procedimentos absolutamente impessoais no domínio público, baseados no modo de produção universal, na cidadania plena, na igualdade perante a lei e no uso de trocas específicas. Sendo assim, “o processo de troca e aquisição de bens não inclui a expectativa de relações pessoais futuras, nem depende da existência de relações anteriores entre as partes envolvidas”.
Mesmo utilizado pelo governo Vargas, o universalismo de procedimentos não foi uma gramática largamente adotada no Brasil. Mesmo após o nacional-desenvolvimentismo, a racionalização operacional do país caminhou a passos lentos. Talvez porque liberdade de expressão, de reunião e de imprensa sejam aspectos importantes do universalismo de procedimentos. O Brasil, com toda sua herança de autoritarismo, não conseguiu exercer muito bem essa linguagem mesmo após a Constituição de 1988.
De certa forma, é perceptível a estreita relação entre as gramáticas políticas brasileiras. Se a seleção de equipes técnicas no aparelhamento estatal feita por um sistema de mérito é falha (ou seja, se o insulamento burocrático não se estabelece), é bem possível que a gramática do Universalismo de Procedimentos seja pouco utilizada ou tenha seu efeito prático reduzido. Da mesma maneira, o Clientelismo não pode ser visto como uma prática isolada visto que, no caso brasileiro, este impacta diretamente na formação de um corporativismo desequilibrado. As gramáticas políticas brasileiras não estão à deriva na prática: elas se unem e se completam.2