A participação do povo na política brasileira, através do voto, é muito recente, historicamente falando. Surge com a proclamação da República, em 1889. Mas era direito de poucos, pois menores de 21 anos, mulheres, analfabetos, mendigos, soldados rasos, indígenas e integrantes do clero não podiam votar. E é importante lembrar que mais de 80% da população era analfabeta nesse período.Moçambicanos impacientes tomam as ruas: o preço da incoerência política e governativa da Frelimo
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Até a década de 1930, o que temos é o voto de cabresto, quando vigorava a prática de coação dos eleitores pelos coronéis. É somente com Getúlio Vargas que são criados o TSE e os TREs, e se instituem o voto feminino e o voto secreto. Mas o Estado Novo, do mesmo Vargas, suspende as eleições. E somente em 1945 que o Brasil vive uma experiência democrática, que durou menos de 20 anos. Nesse período, foram eleitos quatro presidentes através do voto popular.
Em 1964, acho que nem preciso lembrar, caímos na Ditadura. E por mais de 20 anos não houve eleições diretas para presidente. Em 1985, quem tinha menos de 40 anos nunca havia votado em um presidente no Brasil. E os mais velhos já nem lembravam o que era democracia.
Fomos avisados de que, a partir de então, vivíamos numa democracia. E nos perguntávamos: “Mas o que é isso?” “Ah, temos mais liberdade. Temos liberdade de ir e vir, liberdade de expressão e podemos escolher quem manda no país”. Sim, “quem manda”, pois não havia – e ainda pouco há – a ideia de que o presidente deve servir ao povo.
“Ah, mas agora eu tenho liberdade de expressão”. “Isso significa que eu posso dizer o que penso? Mas o que eu penso, mesmo?” Quais os limites de pensamento de um povo que ainda tinha números significativos de analfabetos e semianalfabetos, que agora votavam e que nunca discutiram política antes? Ainda hoje, há quem cultive a ideia de que “política não se discute”, uma das máximas da Ditadura.
Nos últimos anos da Ditadura, no período da chamada abertura política, surge uma espécie de crítica política, extremamente branda, em programas de humor, como por exemplo, a personagem criada pelo humorista Chico Anysio, em 1979, Salomé de Passo Fundo. Era uma professora idosa, que se comunicava por telefone com o ex-aluno que se chamava João Batista, uma alusão ao presidente recém-eleito, por voto indireto, João Batista Figueiredo. A personagem dava conselhos a João Batista, que eram suaves críticas ao governo, entendidas basicamente pelo público mais instruído.
Sem fazer um estudo de caso, arrisco supor que ela tenha sido a precursora dos personagens que satirizam o governo e os políticos. Depois dela, vieram muitos, como o político corrupto Justo Veríssimo, também de Chico Anysio, que sempre encerrava a fala dizendo: “Eu quero que pobre se exploda”. O povo ria de si mesmo e repetia o bordão. E classe média ria mais ainda, pois aquilo não se referia a ela, e a colocava em posição de superioridade. Ela que sempre se ressentiu dos ricos, ao mesmo tempo em que sempre buscou se aproximar deles.
Os programas de humor que satirizavam a política e a sociedade, como TV Pirata, Casseta e Planeta, Sai de Baixo, entre tantos outros, proliferam nas décadas seguintes. O público se apropriava das piadas, como exercício de uma liberdade de expressão que nunca soube usar. E as críticas sociais e políticas foram dando cada vez mais espaço à caricaturização da sociedade e dos políticos. Os problemas sociais viraram piada. E os políticos, “bobos da corte”.
O humor virou sinônimo de deboche, o deboche das minorias, o deboche dos políticos. E esse deboche, disfarçado de crítica social, na verdade, como todo deboche, vem carregado de preconceito e desrespeito. Além disso, o discurso dos humoristas, geralmente saídos da classe média, legitima a exclusão das minorias e a desmoralização dos governos populares. Portanto, reforça o conservadorismo e as ideias fascistas.
A sátira e a política se confundiram ao ponto de surgirem figuras caricatas nas eleições à presidência, como Enéas Carneiro, já em 1989. O humor, o besteirol, se transformou na única linguagem política entendida por muitos brasileiros, ao ponto de se elegerem palhaços, jogadores de futebol e dezenas de figuras jocosas para os mais diversos cargos políticos.
Nas décadas de 2000 e 2010, programas de TV como Pânico e Porta dos Fundos passaram a se dedicar grandemente à formação de opinião política, se utilizando dos recursos do humor, do besteirol e do deboche, tendo como público alvo jovens eleitores de classe média, eleitores despreparados e sem representação na sociedade. Jovens, em grande parte, sem perspectivas, que acabam se identificando com o ridículo e com as figuras caricatas. E por serem muito ativos nas redes sociais, são muito úteis na propagação de ideias.
E foi no programa Pânico que se criou a ideia de Bolsonaro como mito. E o público que estava acostumado a rir da caricatura dos presidentes, agora ria sem parar da caricatura de um candidato, que era carregado nos braços do povo – algo jamais visto – aos brados de “mito, mito…” Era o representante perfeito para aquele público ressentido com as políticas igualitárias que lhe subtraia a única glória. Esse público que não vê a possibilidade de acender socialmente e que encontra no conservadorismo a única possibilidade de se sentir superior.