Em 1967 – somente três anos após o golpe de 1964 – Chico Buarque lança uma de suas mais célebres canções, dita “Roda Viva” que, creio eu, conversa de maneira contundente com a conjuntura que seu deu na data de 8 de Novembro de 2019: dia da soltura do ex-presidente Luís Inácio “Lula” da Silva, um preso político por já um ano e meio.Moçambicanos impacientes tomam as ruas: o preço da incoerência política e governativa da Frelimo
Sobre o Conflito no Oriente Médio
Antes de darmos o devido prosseguimento, há um trecho da música de Chico que destacarei:
“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu […] A gente vai contra a corrente até não poder resistir […] Faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há/ mas eis que chega a roda-viva e carrega a roseira pra lá (BUARQUE, 1967)”
Esses estrofes traduzem um sentimento de desesperança, de perda, de derrota e que, espero que cedo, há de se transformar em resistência. Em 7 de Abril de 2018, quando o homem que, hoje solto, se entregou ao decidir por não resistir ao mandato de prisão de Sérgio Moro, quando a nossa ainda verde democracia foi balançada por um ato político e de injustiça – ora, não haviam provas factíveis contra o réu e a trapaça ficou ainda mais óbvia após os vazamentos que Gleen Greenwald espalhou aos quatro ventos ainda em 2019 – sentimos um golpe duro, “como quem partiu ou morreu”, nas palavras de Chico. Parecia ter sido assassinado e esquartejado ali o sonho de se construir uma base para um país mais igual e que fosse capaz de superar as desigualdades e mesquinhezas que há tantos anos o acorrenta, no qual os negros e índios fossem gente tanto quanto os brancos, e que a nossa história, rica – mesmo que vergonhosa – fosse vista e entendida para que não fosse repetida: em suma, um país igualitário, feliz e soberano, que se entendesse e desse dignidade aos seus tantos desvalidos. E este projeto de país morreria ali, junto com um dos poucos que o pôs para a frente de algum modo, com falhas e tropeços, mas para a frente.
Parecia não passar de um sonho de criança! Eu que nasci dois anos antes da vitória de Lula sobre Serra em 2002, conheci um Brasil muito diferente dos meus pais e avós. Quando ouvia as histórias sobre a seca a fome, me pareciam relatos de tempos distantes e que nada tinham a se relacionar com o meu mundo, e não sabia bem o porquê. Crescido, entendi o que havia mudado e o quanto isto era frágil e, além, o quão rápido tudo poderia ser perdido, afinal, é uma coisa frágil essa tal de democracia. Desde que Cabral pôs seu pé nas areias de Porto Seguro, somos dominados por uma elite que aprendeu a ser preguiçosa, que nada dá e tudo tira, que se aproveitou de africanos escravizados por mais de trezentos anos e que mesmo hoje, ainda os destratam, vi o descaso com os nordestinos e com os pobres da terra, assim como o que se faz quando estes, de modo justo, se revoltam – vide a Guerra de Canudos, o Cangaço e o Contestado – e que, passados quase duzentos anos de nossa independência, pouca coisa de fato mudou, duvida? Olhe para as favelas e para as comunidades pobres, qual a cor das pessoas que vivem lá e com o que elas trabalham? Olhem para as faculdades de medicina e direito, para os executivos e empresários de classe média e depois para os pedreiros e garis, notem a diferença; vejam as cidades, as ruas e as comparem entre nordeste e norte com o sul e sudeste, são semelhantes? Procurem pela desigualdade, pelos pobres, por aqueles que não comem todos os dias – e existem e estão mais perto do que imaginam.
Sim, fazemos parte de um país desigual e subserviente desde nossa existência como colônia de Portugal, mas, para quem nasceu entre 1995 e 2001, era tudo diferente: economia crescendo, comida na mesa, respeito internacional, inclusão de minorias, um presidente operário. Iríamos conseguir progredir, finalmente. Lula, que é nordestino, que viu a fome, as fábricas, a repressão, era uma esperança e uma luz, esta que foi apagada pelas mesmas rodas-vivas das elites que nos dominam a séculos, e em nome de que? Há uma resposta simples: pela manutenção dos privilégios que são deles durante toda a nossa história, são uma roda-viva, e citando Chico Buarque: “faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há, mas eis que chega a roda-viva e carrega a roseira para lá”.
Mas ainda há esperança. A luta não acaba e vamos “[…] contra a corrente até não poder resistir” e, hoje, tivemos uma vitória depois de infindáveis derrotas. Não cabe a mim dizer que Lula é inocente de todas as acusações que recaem sobre ele – que se forem provadas como verdadeiras e da maneira correta, aí sim, que o prendam – o fato é de que ele foi um preso político durante todo o tempo em Curitiba. O calaram para que não vencesse a eleição, para que não continuasse seu projeto de nação, em ordem de se restaurar os status quo que há tantas eras nos rege. E, em 8 de Novembro de 2019, há esperança.
No fim, quero crer que o amor derrotará o ódio, que nos entenderemos e que tudo isto que nos assola passará, que é só um sonho ruim e um período triste, mas passageiro. Não estamos em bons lençóis, a Constituição foi rasgada e chegamos ao ponto de o presidente, acusado de envolvimento em um assassinato, recolher as provas antes da chegada da polícia. Em que um homem público fala em “restauração do AI-5”. O que dá para sentir no meio deste turbilhão é só medo, mas que passa, pois ainda há esperança, e encerrarei com um dito de Che: de que nunca conseguirão deter a primavera.