“Pode ser uma grande coincidência, mas em 2016, quando o povo americano elegeu um ‘laranja’ Nacional-Socialista e o Reino Unido votou para deixar a União Europeia, seis dos 12 filmes mais vistos foram de super-heróis. Não digo que um causou o outro, mas creio que são sintomas de um mesmo problema — uma negação crônica da realidade e uma busca tola por soluções simplistas e sensacionalistas.” 1
No dia 30 de dezembro de 2021, uma notícia publicada no site Metrópoles dava conta de que a polícia federal realizou uma operação sobre um grupo nazista articulado em vários estados e que planejava atentados. Além da prisão de um homem que alegou planejar assassinar pessoas que ele dizia não ser “cidadãos de bem”, várias obras de apologia foram apreendidas. Ilustrando a publicação, figuravam obras nazistas ou sobre nazismo, juntamente com os livros “A Filosofia dos Super-heróis” e outras com o mesmo tema vinculados aos quadrinhos dos Vingadores, dos X-Men, etc.
É preciso dizer que enquanto preparava este texto, ao voltar à matéria, as fotos que congregavam juntos os livros sobre super-heróis e os de apologia ao nazismo já não integravam a reportagem. Não é de se estranhar, nenhuma editora quer se ver relacionada ao tema, nenhum jornalista quer ser responsável por fazer essa associação de forma imagética. Esses livros, por estarem sendo lidos junto aos materiais nazistas não devem ser considerados problemáticos por isso. Não é isso que este artigo propõe, tampouco vincular as produções de quadrinhos e filmes baseados em super-heróis como essencialmente fascistas ou neonazistas.
Uma leitura do protofascismo inerente à produção de quadrinhos do século XX
Ao criticar o governo dos EUA no começo dos anos 2000, Umberto Eco 2 apontou que a própria cultura estadunidense carrega um profundo sentimento de “protofascismo” (Eco, 1995). Assim sendo, tal ideologia se ramificaria em vários setores da economia estadunidense e em especial no sistema midiático, englobando um falso moralismo puritano, o patriotismo fanático, cheio de ‘Heróis” e “Super Heróis” defensores da América.
Se por um lado, a produção dos quadrinhos de guerra norte-americanos é, em geral, representada pela icônica capa em que o Capitão América dá um soco em Hitler, isso se dá em essência através de um personagem que por si só, representa uma espécie de versão americana do sonho de pureza ariana.
Embora não seja a única forma de ler criticamente as histórias dos super-heróis do século XX – outra forma seria, por exemplo, através do pós-humanismo –, talvez essa seja a estranha contradição na concepção dos personagens que inspire uma igual contradição nos leitores. Leituras de histórias que falam sobre valores democráticos e até mesmo direitos de minorias se coadunam com ideologias como o nazifascismo.
Assim, não deve ser um choque perceber que em meio à violência em Charlottesville em 2017, um participante do comício da supremacia branca foi visto vestindo uma camiseta “Hydra” e alguns usavam capacetes do Capitão América, como contou à época o site Bleeding Cool. 3
Grupos de cultura nerd como campos de recrutamento
Voltando ao caso recente no Brasil. Um dos nazistas preso em dezembro disse em depoimento ser o “Vigilante Noturno”, respeitando apenas “pessoas honestas” e desesperado pelo “mundo estar se tornando cada vez mais decadente”. A presença de livros que tratem de super-heróis pode ser tanto parte de um mesmo fenômeno – como afirma Allan Moore, por exemplo, na epígrafe deste texto – ou até mesmo um método.
Não são raros os relatos de disseminação de ideias reacionárias, quando não abertamente nazifascistas, em grupos de cultura nerd e gamer na internet. Entre 2017 e 2018, dois textos foram publicados no site Medium por uma usuária que se identifica pelo nome “DEO” 4, com farta documentação visual de fóruns estadunidenses com este conteúdo.
Com o anonimato da internet e dentro de um contexto social de avanços de conquistas sociais por minorias, esses grupos encontraram no século XXI um terreno fértil para propagar seus preconceitos e formar novos grupos. No livro de 2017, “Kill All Normies” 5, Angela Nagle investiga casos como o do “gamergate”, em que mulheres entraram no universo privado e considerado “propriedade” de grupos gamers e nerds em geral, e acabaram virtualmente linchadas e ameaçadas de morte.
No Brasil, entre os divulgadores do ódio e da supremacia racial na internet, talvez o primeiro grande exemplo seja a criação do Valhalla. No ar desde 1997 e retirado de operação em 2007, apenas por ação judicial e com a colaboração das polícias brasileira e argentina, o site foi provavelmente o maior host sul-americano de páginas da extrema-direita. Nele se podia encontrar textos de revisionismo do Holocausto e de propagação da ideologia nazista.
Desde o fim do Valhalla, o número de simpatizantes do nazismo cresceu bastante no Brasil. 6 Segundo a pesquisadora Adriana Dias 7 : “A sociedade brasileira está se nazificando. As pessoas que tinham a ideia de supremacia guardada em si viram o recrudescimento da direita e agora estão podendo falar do assunto com certa tranquilidade”, disse em entrevista de 2019.
Grupos reacionários, em especial ligados a apoiadores do governo de Jair Bolsonaro, adotaram temas e estratégias para dialogar com públicos mais jovens. Seja através de canais no YouTube, seja através de grupos privados no Whatsapp e Telegram, estes grupos são ávidos em comentar e apontar “doutrinações de esquerda” em filmes, quadrinhos e jogos.
A expansão do Neonazismo no Brasil e os apitos de cachorro
A reação ainda tem sido tímida e, em geral, através de agentes de divulgação científica e crítica, que também migraram das universidades para as novas mídias. Mas, é esta reação que parece ser a esperança real de resistência. Mesmo assim, se dez anos atrás o advento da divulgação científica no Youtube parecia ser o grande avanço da educação, hoje a cultura já se tornou amplamente diferente.
A cultura pop a que nos referimos não é mais aquela dos filmes e quadrinhos. Ela é contituída pela Tv e pelos influenciadores digitais na mesma medida, comporta os Tiktokers e os canais de notícia online, os ex-bbbs e os podcasters.
Quase como que anunciando este texto -e em meio a revisão final-, um dos apresentadores daquele que seja o podcast de maior sucesso no país disse que acreditava que um partido nazista deveria existir. Foi apoiado por um deputado federal, presente na entrevista. Tornou-se assunto do Jornal Nacional.
Na mesma noite, discutindo esse exato tema, um comentarista política e ex-bbb fez um gesto que foi entendido como uma saudação nazista. Em publicação de 19518, Adorno foi muito feliz em demonstrar como a recusa dos nazistas em “parar um instante para raciocinar” era a barreira que empedia “toda a encenação de ruir”.
Por isso se aproveitam justamente dessas ambiguidades, por isso falam de forma propositalmente contraditória. Alternar o apito de cachorro com a falsa sirene, empregando linguagem em código que parece não significar nada para a população em geral, mas que tem um alvo bem delimitado encontra grande espaço na cultura nerd atual.
Um sieg hail disfarçado de tchauzinho, o preseindente participando do “desafio do copo de leite”, o White Power nos dedos de Felipe Martins,o pronunciamento do Secretário de Cultura Roberto Alvim, tudo isso é apito de cachorro. A certeza é que essas mensagem tem um alvo e certamente está sendo bem compreendida. Não por menos, os maiores grupos da extrema-direita brasileira já migraram – e mais de uma vez – para comentar ou produzir cultura pop.
↑ Nagle, Angela. Kill All Normies, 2017, Zero Books
↑ “Brasil tem 334 células nazistas em atividade” em https://matheuspichonelli.blogosfera.uol.com.br/2019/11/18/brasil-tem-334-celulas-nazistas-em-atividade-diz-pesquisa/?cmpid=copiaecola
↑ Adorno, Theodor Wiesengrund. Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda. In ARATO, Andrew; GEBHARDT, Eike (ed.). The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1951, pp. 118-37
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