Lembro-me de cinco ou seis homens // Não sei mais se novos ou velhos // Sei que traziam nas mãos maços de panfletos // Os mesmos que vi serem descartados ao ar, em meio a multidão compacta // Dez ou quinze minutos depois // Sob os gritos de: “Fora! Fora! Fora!Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Neste junho, de triste outono, se rememora os dez anos das “Jornadas de Junho”, de 2013. Assim a mídia chamou uma série de manifestações que aconteceu em várias cidades brasileiras ao longo daquele mês e, até mesmo, depois. Acontecimento histórico ao qual foram e são atribuídos múltiplos significados.
Inicialmente, as reivindicações se concentravam contra a tarifa do transporte público paulista. Mais tarde, novas pautas e diferentes protagonistas tomaram lugar. Um crescendo de pressões que não encontravam válvulas de escape satisfatórias. Agora era o “não é só por vinte centavos.”
Em São Paulo, os protestos aconteceram nos primeiros dias de junho e foram articulados por estudantes. A capital ostentava a “honraria” de passagem mais cara do país. O movimento estudantil lutava pelo seu renascimento e para ocupar os espaços deixados pelos movimentos sociais em refluxo de há muito. No dia 7, barricadas com fogo causaram um engarrafamento monstro no centro da Cidade. Um aviso. Ainda assim, a nova tarifa foi aplicada. O suficiente para que milhares de pessoas se sentissem estimuladas a participar de um ato que abalou a rotina garoenta dos paulistanos. A reação da polícia transformou a manifestação numa batalha: a “Batalha da Consolação”. Ônibus, carros e lojas foram depredados. 200 pessoas presas. O Movimento Passe Livre ganhou notoriedade.
O ato tido como mais marcante, no entanto, aconteceu em Brasília, no dia 20. Data tomada como referência nas efemérides, portanto. A Esplanada dos Ministérios foi ocupada por manifestantes que se posicionaram não apenas contra o preço das passagens de ônibus, mas também contra os gastos com a Copa do Mundo – que aconteceria no ano seguinte –, a corrupção, a desestruturarão das políticas de saúde e educação; entre outros pontos que se transformaram em bandeiras sem muitas dificuldades.
Ao contrário do que aconteceu em 8 de janeiro, dez longos anos depois, a segurança da capital estava preparada para rechaçar as ações dos que protestavam, quando estas se tornaram atos de vandalismo. Não faziam figuração em uma patética tentativa de golpe de Estado.
A multidão marchara para a Câmara dos Deputados. Queimaram-se faixas e cartazes; cones de trânsito; lixo; qualquer coisa inflamável. Frustrados, parte dos agora criminosos foi para o Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores. Lá, grupos ocuparam as entradas do prédio, outros lançaram objetos contra a fachada, se acenderam novas fogueiras e se forçaram portões. A reação violenta dos policiais, tão ao sabor do que costumam fazer com os trabalhadores que reivindicam seus direitos, obrigou a turba a recuar; mas as cenas viralizaram por todo mundo virtual.
O Ministério do Trabalho, a Catedral Metropolitana e outros prédios também sofreram algum tipo de depredação. Somente cerca de sete horas após o início da confusão, os ânimos pareceram controlados. O policiamento deixou o local. Calcula-se que algo em torno de 5 mil pessoas tenham participado das invasões em Brasília. Contou-se 125 feridos. 3 presos. Incontáveis fotos e vídeos da multidão dançando sobre o telhado do Congresso Nacional.
O uso do termo “jornadas” me parece algo inadequado. Temo que faça eco, nas mentes desafiadas, à Revolução Francesa. Uma comparação indevida aos movimentos populares que marcharam sobre a Convenção – algo como o Congresso Nacional francês da época. A fome era o motor do ódio das massas, então. E no dizer de Albert Soboul1, falecido professor da Sorbonne, o “Terror” se tornou “a ordem do dia”. Momento em que a perseguição, caótica e feroz, a todos considerados contrarrevolucionários e pelo controle absoluto do Estado foram os instrumentos de acesso ao poder. Uma vitória do povo, que se impôs às autoridades procrastinadoras. Medidas há muito reclamadas, tomadas. Um governo radical e totalitário, organizado.
Isto, retomando nosso DeLorean para os dias atuais, não aconteceu no Brasil de 2013. Nem com toda a excentricidade de um Doc Brown. Mesmo respeitando as proporções do que aconteceu lá e aqui, não há como aceitar a comparação sem um certo esgulho. O mesmo que muitas pessoas têm ao verem uma camisa da seleção brasileira de futebol, ultimamente.
Não houve uma revolução, pois isto é um processo. 2013 pode até ser compreendido como uma etapa do mesmo… Vá de retro! Mas, muito ainda vai acontecer e os sinais indicam que novos desdobramentos estão por vir. Na história, tempo é matéria-prima que não se leva no porta-luvas de automóveis futurísticos.
Naqueles dias, apareceu o que existe de vil e reacionário, mas também o que há de generoso e avançado. De forma politicamente anárquica, ambígua, confusa. Os mais variados símbolos de conhecidos partidos políticos foram atacados. Seus militantes, agredidos fisicamente. Como na cena assistida e descrita na abertura deste texto. Ao mesmo tempo, se viu recuperada uma “gana” pela participação política que há muito não se via nas ruas do país. Pelo menos, desde as Diretas Já, em 1983, ou o Fora Collor!, em 1992. Fui testemunha dessas contradições, nos atos.
No Rio de Janeiro e em Niterói, milhares de pessoas enfrentaram a polícia com pedras e barricadas. Ao que responderam com spray de pimenta, bombas de efeito moral e muita porrada. Pontos de ônibus, agências bancárias, lojas, foram depredadas. “Não quero Copa! Nem estádio de 1 milhão! Quero é mais dinheiro pra saúde e educação!” Era o coro mais ouvido pelas ruas apinhadas, sob o odor irritante da malagueta. Dias depois, a cidade assistiria a maior manifestação já então realizada.
O sistema político brasileiro foi surpreendido. Entre atônitos e exasperados muitos agentes políticos se esforçaram para entender o que acontecia. E aproveitar o momento… Mas quem montou o cavalo encilhado que passou em disparada não foram os democratas, nem mesmos os coronelzões da política tradicional, mas a extrema-direita. Ao que parece souberam compreender melhor o potencial do que se apresentava. Cheiro de sangue no ar; de carne putrefata do próprio sistema.
A greve dos caminhoneiros, em 2018, na qual, grupos extremistas da direita tiveram uma participação ativa, pode ser lembrada como exemplo. Mobilizando grupos de todo o Brasil, provocou uma crise de desabastecimento que atingiu todos os Estados e o Distrito Federal. Se evidenciou que uma nova direita chegara e conseguia se articular com a insatisfação popular.
Presidia o país, em 2013, Dilma Rousseff. Segundo alguns institutos, como o Datafolha, ela gozava de mais de 65% de apoio. Em poucas semanas, esse pilar ruiu pela metade. O mesmo aconteceu com outros governantes; independente do espectro ideológico. No município de São Paulo, com o governo petista de Fernando Haddad; com Eduardo Paes, então no PMDB, em terras cariocas; e, até mesmo com Eduardo Campos, do PSB, em Recife.
De modo geral, todos apelaram para a repressão ao lidar com os protestos. Até porque, a exemplo de Brasília, muitos descambaram para o tumulto e a destruição. Os Black Blocs que o digam! Suas táticas de autodefesa e de ataque a tudo quanto poderia ser identificado com o capitalismo, estiveram presentes em praticamente todos os atos.
Todas as autoridades acabaram enfraquecidas e derrotadas. A juventude obteve apoio da maioria da população. Em especial, das classes médias. Operários entraram em greve em julho e agosto, na onda reivindicatória aberta. O “Dia Nacional de Luta”, 11 de julho, foi a quarta greve geral da nossa história desde a Independência.
As redes sociais tiveram um papel fundamental na arregimentação e organização das massas que protestavam. Segundo alguns, a partir daí, a medida que se conscientizaram, passaram a disputar espaço na sociedade e sua estrutura de poder. O que faz lembrar a afirmação de George Rudé2, professor e especialista em uma história “vista de baixo”, que atribuiu a conscientização política dos sans-culottes aos movimentos de protesto, aos motins. Mas a comparação é indevida. Ele mesmo alertou, que a politização dos trabalhadores urbanos das grandes cidades francesas de fins dos setecentos foi adquirida com a intermediação dos parlamentos locais. O que não se viu no Brasil de 2013, quando o brasileiro médio já havia adquirido uma autêntica “urticária” à política que vicejava entre nós, perene como se fosse arbustos, historicamente plantados para beneficiar apenas alguns grupos. A mesma ojeriza da qual se aproveitariam alguns operadores do Direito, pouco tempo depois, para posarem de “justiceiros do povo”, lavando a jato a frustração nacional enquanto encobriam suas pretensões políticas e financeiras.
“Junho de 2013”, assim se prefere chamar, se foi e a impressão decalcada foi a de erro. O golpe parlamentar que derrubou o governo Dilma, fixou essa imagem. Em nossos dias, com a extrema-direita ativa e forte, parece confirmada. Mas, não se deve reduzir o acontecimento às nossas expectativas e posicionamentos políticos.
É bom lembrar das revoltas na Tunísia e no Egito, dos protestos gregos; da “indignação” espanhola. A Wall Street sendo ocupada. Há um movimento mundial em que aqueles que não se sentem representados pelas instituições políticas construídas pelo liberalismo – desde o século XVIII – querem atuar. Construir seus próprios caminhos para um mundo que, quiçá, não seja o que desejamos. As multidões estão nas ruas, nas redes sociais. Não para tomar o poder como o conhecemos, mas provavelmente para destruí-lo. Estejamos atentos.34