Não temos uma data e nem a origem de quando um ser humano sofreu preconceito pela sua condição social, pela sua condição de pobreza. O acúmulo econômico é sinônimo de poder, este poder às custas dos que menos ou nada possuem, faz parte de um mal milenar.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Esta doença social faz parte de nossa estrutura, penso ser uma das partes centrais do sistema capitalista, ou neoliberalismo (nome de mais uma das mutações sistêmicas) ou Hidra Capitalista como apontam os Zapatistas quando nos ensinam e escrevem de Chiapas (Contra a Hidra Capitalista, 2021), como sendo um monstro de várias cabeças.
No ano de 1995 pela primeira vez foi lido um termo que viria a traduzir este mal social, palavra criada pela filósofa espanhola Adela Cortina1, como ela mesma cita em seu Livro Aporofobia um desafio para a democracia, a autora revela que:
Foi em 1º de dezembro de 1995 que publiquei uma coluna que levava o título de “Aporofobia”. Referia-me nela a uma conferência euromediterrânea que ocorreria em Barcelona aqueles dias e que pretendia trazer a luz temas candentes dos países da área mediterrânea, temas que ainda hoje seguem pertinentes, como a imigração. O terrorismo ou os processos de paz, e aos quais se deveria somar a crise e o desemprego. (CORTINA, 2020, 26-27)
Aporofobia é o termo que sintetiza o preconceito pela condição social/econômica que uma pessoa sofre, do grego Á-poros (pobres) fobia (medo, aversão, ódio), seria a junção ódio aos pobres, pelo fato de serem pobres, de não terem condição econômica. Adela começa a sua análise a partir da realidade dos emigrantes que chegam na Espanha, percebe que o mesmo país que se prepara para receber milhões de turistas por ano, é a mesma Espanha que não recebe de forma digna os refugiados vindos da África ou de outros lugares do mundo. Percebe que há xenofobia, mas principalmente nesta sociedade de trocas, ela enxerga que há aporofobia, ou seja, são discriminados ou mal aceitos pela sua condição financeira, por chegarem praticamente com a roupa do corpo.
A grande contribuição de Adela foi encontrar um termo para este mal, então hoje conseguimos apontar e taxar este tipo de preconceito. No Brasil o livro ganha a tradução para a português no ano de 2020, depois que o padre Júlio Lancellotti encontra um exemplar em espanhol, na livraria Loyola, ao ler o mesmo sentiu a necessidade da tradução para o português, publicação feita pela Editora Contra Corrente. A partir disso sentamos para a pensar com o Padre, pois dos 23 anos que convivo com a população de rua na cidade de São Paulo (16 são ao lado do Padre Júlio), e nisso nasce o Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga2, no qual procuramos a produção de pesquisas sobre o assunto, denúncias e a luta para que a aporofobia seja crime de ódio, mas tudo isto tem sido construído com a população de rua, pois é assim que procuramos articular nossas ações.
Uma das questões que começamos a perceber com o tempo, foi a necessidade de tornar o termo mais acessível, mais próximo das vítimas da aporofobia, entendível, levando em consideração que grande parte da população brasileira não sabe ler grego ou não tem intimidade com termos nesta língua. Para que as vítimas possam se apropriar de sua luta é necessário que tomem o termo de forma mais acessível e entendível, até para que possam identificar e denunciar o mal que sofrem.
Há dificuldade na pronúncia, em todas as rodas de conversa precisávamos explicar detalhadamente o termo aporofobia. Cabe dizer que uma das pessoas que começou a nos apontar a necessidade de descolonização ou então latino americanização do termo foi o teólogo/filósofo e amigo Leonardo Boff em uma das conversas que tivemos com ele no começo deste ano. A partir de todas estas questões vimos a necessidade de latinizar o termo aporofobia, para que ficasse mais fácil e acessível a apropriação do mesmo.
Às vezes as palavras mais comum e do dia a dia estão à nossa frente, não nos damos conta, então pensei que o mais próximo da nossa realidade e também da realidade latino americana por conta que na língua hispana tem o mesmo significado, no caso Pobre, seria POBREFOBIA. Pensando no termo, e vendo que traduzia de um jeito muito próximo, sem perder o significado, liguei para o Padre Júlio Lancellotti e começamos a divulgar e utilizar o termo, no nosso dia a dia com a rua, tentando espalhar e popularizar o mesmo para a realidade latina, ou seja, local.
Com o termo pobrefobia, podemos começar a produção de materiais sobre este mal, a partir da nossa realidade, pensando que a pobreza atinge da mesma forma as pessoas ao redor do planeta, mas que há particularidades dos pobres no nosso continente. Cunhamos um termo para traduzir a aporofobia, mas este termo não é nosso, ele tem que ser de todas as pessoas que lutam contra este mal, principalmente dos pobres que são as vítimas, quem sofre precisa saber o preconceito do qual é vítima. Também existe a necessidade de ultrapassar as barreiras da academia, que aquilo que escrevemos seja traduzível do lado de fora, lá onde as pessoas não tiveram os mesmos acessos ou privilégios.
Neste sistema que tem como centro o dinheiro, que transforma direitos em privilégios, é necessário apontar que a pobrefobia precisa ser assinalada como uma das tantas cabeças da hidra. Somos pobrefóbicos na nossa forma de agir e pensar, pensamos de maneira neoliberal e consequentemente reproduzimos este preconceito, para Casara (2022) no Estado Neoliberal podemos observar uma potencialização da pobrefobia, no sistema no qual o Estado trabalha pelos interesses daqueles que mais possuem financeiramente, o preconceito àqueles que menos podem consumir se faz mais presente ou até legitimado. O neoliberalismo, mais do que parte do sistema ou Estado, atinge o ser humano por dentro, ou seja, na sua maneira de ser, de pensar, de agir, fazendo parte da subjetividade. Pensamos e agimos muitas vezes de maneira neoliberal, enxergamos as pessoas como empresas, ou vemos o retorno financeiro que as relações podem fornecer, sendo assim os pobres acabam colocados como aqueles que não trazem retorno financeiro.
O momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do homem em torno da figura da empresa”, ou seja, uma identidade construída a partir de imagens que fazem de cada sujeito uma empresa em concorrência com outros sujeitos empresariais. O sujeito neoliberal é o sujeito empresarial, e a lógica da concorrência condiciona sua vida. “Empresa” é também o nome que se deve dar ao governo de si na era neoliberal”. Desenvolve-se, então, um imaginário voltado à produção de uma subjetividade comprometida com uma atividade que deve gerar lucro. (CASARA, 2021, p. 340-341).
A pobrefobia como parte desta estrutura pode ser diminuída, mas penso que não pode ser extinta neste sistema, através de processos educativos podemos mostrar para as pessoas que os pobres não são culpados pela pobreza que os atinge, se faz necessário apontar os motivos que levam a pobreza, assinalar a sociedade do descarte, inverter a lógica que ataca os pobres e não a pobreza. A própria Adela (Cortina,2020) em seu livro nos aponta que nos países mais aporofóbicos é mais difícil o combate a pobreza, deve ser justamente porque quando culpabiliza-se os pobres pela sua pobreza inocenta-se o sistema e a estrutura. Por isso se faz necessário este processo educativo, para além de popularizar o termo (pobrefobia) inverter esta lógica cruel de culpar as vítimas e não apontar os vitimados.
Eu sofri pobrefobia na minha infância no Chile, também quando cheguei ao Brasil, tanto pelas roupas que vestia, ou pela falta de itens que outros tinham, na vida adulta diante de muitas dificuldades, percebi que no olhar é onde mais a pobrefobia se manifesta e justamente foi a resposta mais apontada pela população de rua na nossa pesquisa:
Valorizamos e seguimos reconhecendo a contribuição de Adela Cortina em criar um termo que sintetiza e traduz esta doença social, mas diante da nossa realidade (como apontamos acima) vimos a necessidade de tornar a palavra aporofobia mais acessível, foi aí que pensamos na criação do termo Pobrefobia para uma realidade latino-americana.
Há um longo caminho pela frente, uma longa luta e resistência, para que a discriminação contra os pobres, por serem pobres, seja diminuída e quem sabe numa quebra de sistema erradicada. Mas seguimos nesta construção, nas ruas, debaixo dos viadutos, em uma cidade rica que exclui, combate e reprime os pobres, que através de muitas ações legitima e potencializa o preconceito contra os pobres e que frequentemente utiliza a necropolítica (Achille Mbembe, 2011) que acredito ser o último e mais violento estágio da pobrefobia.