O processo de falência política de um partido socialista decorre do momento em que sua raiz de composição deixa de ser organicamente conduzida a uma unidade da classe proletária pela tomada dos meios de produção e, consequentemente, pela revolução da práxis em suas mais diversas manifestações, e institucionaliza suas bases, transformando-o em um órgão fisiológico do sistema excretor burguês.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Essa escatológica e repulsiva alusão provém da dificuldade de uma organização política de esquerda num país como capitalista de manter seu trabalho de base conectado a seu processo de formação crítica, desmobilizando a classe operária (e suas especificidades), aderindo ao que chamamos de “fisiologismo partidário”, ou seja, a parcial ou total sistematização das estruturas que fomentam, ideológica e administrativamente, sua organização enquanto instrumento de defesa do proletariado.
Essa sistematização, como é de conhecimento público, ocorreu nas estruturas administrativas do Partido dos Trabalhadores. Esse “transformismo” das correntes do maior partido de “esquerda” do Brasil é explicado, de forma contundente, pela socióloga Sabrina Fernandes em seu livro “Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira”:
“O transformismo é um fenômeno hegemônico, ou seja, consiste em minar o potencial revolucionário através de formas que reforcem ainda mais os atores no poder (como a cooptação) e impeçam a classe de enxergar e buscar alternativas (como a despolitização e a manipulação).” (FERNANDES, Sabrina. 2019, p. 145)1.
Esse mesmo transformismo que o PT sofreu, e ainda sofre, com suas centrais sindicais desarticulando Brasil afora movimentos da classe operária, como foi o caso da demissão de 1000 trabalhadores, em sua maioria mulheres, nas fábricas da LG e terceirizadas em São Paulo em abril de 2021, e a tentativa de conciliação e desmobilização da greve por direitos trabalhistas, por parte da CUT, realizando um acordo com a burguesia industrial. A professora e militante do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), Letícia Parks, em 27 de abril, postou um vídeo em seu perfil do Instagram, intitulado “LG QUER BOTAR 1000 FAMÍLIAS NA RUA”. Um dos trechos que ilustram esse transformismo está em:
“Essa atuação traidora da CUT a gente tá vendo se repetir no Brasil inteiro. Gente podiam estar acontecendo lutas, enormes lutas, contra os ataques do Bolsonaro, do Mourão, dos militares, e até dos que fingem ser oposição desse governo (como o próprio Dória), mas que no fim defendem todo esse regime do golpe. O que a gente vê o PT fazer, à frente dos milhares de sindicatos é conter a luta, porque sua estratégia é esperar as eleições de 2022, se aliando pra isso com todos os setores golpistas, que vão exigir de um futuro governo do PT, que mantenha e aprofunde todos os ataques.”2.
Como pôde ser ilustrado, a descaracterização do partido que antes se considerava como “defensor dos trabalhadores”, beira a uma farsa daquilo que Vargas fora um dia: o espectro de conciliação entre a classe operária e a burguesia, com a figura de Luís Inácio Lula da Silva, como um “padrasto dos pobres” e a “madrasta dos ricos”, mas com todo o “amor e carinho” que se assemelham ao “bom e velho” getulismo. A conciliação de classe, que originou o personagem principal deste artigo, o PSOL, serviu de ponte para o processo de desenvolvimento de setores da alta burguesia, como os banqueiros e latifundiários, consolidarem seu Capital Político no espaço tripartite da coordenação do poder no país, criando sujeitos que se adequam ao núcleo de exploração na estrutura político-econômica da sociedade. O sistema eleitoral é, portanto, plutocrático.
Nesse contexto do “ganha quem dá mais”, surgem os três “peões” do Capital nesse xadrez político-eleitoreiro: a “esquerda” transformista, a extrema direita: de caráter (neo)fascista, e o “Centrão”. Esse último tem por função coordenar o poder em sua esfera legislativa, favorecendo as quatro principais instituições do capitalismo político brasileiro: a igreja (em específico a crescente neopentecostal, não anulando o papel das outras correntes evangélicas e a igreja católica), os latifundiários, o exército e polícia (federal, militar e civil) – esta última, muralha física e administrativa do governo Bolsonaro – e, em correlação com essas três bancadas, os banqueiros. Aquelas peças de xadrez, ditas anteriormente, estabelecem e estabelecerão (enquanto não houver uma real e orgânica alternativa radical no país), o ciclo (vicioso) eleitoral brasileiro.
O personagem principal desse artigo, como havia dito, é o PSOL, partido que vem crescendo em uma proporção avassaladora, tanto em número de filiados como em influência político-ideológica nos vários cantos do país. Entretanto, aquilo que Fernandes (2019) havia dito anteriormente, parece estar definindo o destino político desse partido socialista. Isso, portanto, caracterizar-se-á como a morte orgânica de um dos principais partidos socialistas registrados no TSE, junto a Unidade Popular e ao Partido Comunista Brasileiro.
O que chamo de “Eclipse do Sol Vermelho” (uma alusão ao símbolo e à corrente socialista enraizada no bojo ideológico do PSOL), contextualiza-se no período atual do 7º (e fatídico) Congresso Nacional do PSOL. Um evento que fora inicialmente combatido por um certo número de correntes e filiados independentes do partido, devido a sua composição híbrida (plenárias remotas e votação em urna de maneira presencial), em meio a uma pandemia na qual a vacinação caminha a rastejos de caracol. Todavia, a problematização desse congresso se dá a uma forte tendência de coletivos, como a Resistência/Psol, a Insurgência e a Primavera Socialista, de apoio a uma proposta de derrota do neofascismo de Bolsonaro, visando uma “unidade de esquerda”, não com os partidos definitivamente de esquerda radical, mas com o transformista PT, apoiando Lula logo no primeiro turno.
A unidade de esquerda não é um problema quando trata-se de linhas de ação no que se refere às manifestações crescentes contra o governo genocida, ou a uma pressão (como já ocorre, e sem sucesso algum) pelo impeachment de Bolsonaro. Além disso, o apoio do PSOL num segundo turno seria muito importante (numa situação de segundo turno contra o presidente, até mesmo um poste de luz seria a melhor alternativa contra o escroque no cargo executivo).
Contudo, a alternativa de esquerda, realmente socialista, nas eleições majoritárias, contra o establishment eleitoral burguês, com Lula, Bolsonaro, Dória, Eduardo Leite, Ciro, Huck, ou qualquer candidato do nicho liberal-desenvolvimentista ou ultraliberal, em termos de primeiro turno, é absolutamente vital para o partido (que corre um risco de “transformar-se” em uma instituição moderada e desmobilizadora, como já ocorre em diversos estados – em caso particular, no Ceará – com a escassez de uma mobilização de base por meio da Formação Emancipadora) e para a população brasileira, que mais sofre com o fisiologismo e a exploração da mais valia pelo Estado (que é capitalista) e pela burguesia.
Valério Arcary, historiador e militante da Resistência/Psol, escreveu em sua coluna no Brasil de Fato, que a candidatura própria do PSOL no primeiro turno seria uma espécie de “obstáculo” para as massas trabalhadoras no pleito eleitoral.3 Tal afirmação é dominante no cenário congressual, com a maioria das teses apresentadas em sua segunda fase apresentando essa “unidade de esquerda” no primeiro turno.
Que unidade seria essa? Tais teses, que reivindicam uma frente ampla de esquerda e, ao mesmo tempo um “Psol radical”, “ecossocialista”, “independente”, entre outras afirmações socialistas convencionais. Ao ler algumas dessas teses, me veio uma crise de risos sem tamanho. A busca por uma aliança com o PT é um salto para o abismo neoliberal, que partidos como o PCdoB e o PPS adentraram anos atrás. Lula busca alianças com a mesma direita fisiológica que culminou para o impeachment de Dilma, em 2016, seja com o MDB (partido que recentemente perdeu seu único membro mais combativo dos ditames liberais da maioria, o ex-senador Roberto Requião), seja com a ala eu hoje se associa com Bolsonaro, legendas como o Partido Liberal e o Democratas.
Lula vencerá a eleição, e o apoio do PSOL contribuirá com uma porcentagem ínfima no pleito majoritário. Mesmo sendo um partido que cresce cada vez mais em número de filiados a cada ano, sua influência pouco interfere frente aos partidos da esquerda liberal. Existe algo mais do que apenas uma aliança para derrotar Bolsonaro. Nos últimos anos, a legenda apresentou um discurso mais eleitoreiro do que um a transformação da práxis capitalista, seja por meios institucionais, seja a partir da formação e organização nas ruas, nas favelas, nos campos, nas escolas, ou seja, em todo espaço em que a necessidade de mobilização é necessária.
O temor de uma vitória de Bolsonaro sobre a esquerda brasileira é maximizado visando uma vitória do candidato do PT. Nas palavras de Fernandes (2019):
“O receio de que um governo de direita pudesse revogar esses benefícios foi difundido para evitar que as pessoas vissem muitos outros direitos que o PT concedeu a elite. Esse receio, claro, se concretizou na conjuntura pós impeachment.” (FERNANDES, 2019, p. 146)4.
Ela prossegue:
“Todavia, se faz necessário entender que essa ameaça não era concreta nos anos de um governo petista fortalecido e que, talvez, não teria se concretizado caso os governos petistas não tivessem fortalecido as classes dominantes e a direita (sua representação autêntica) na busca constante da conciliação de classes como tática de permanência na presidência por via eleitoral” (FERNANDES, 2019, p. 146)5.
Portanto, o medo da direita neoliberal ascender ao poder nos períodos áureos da era Lula, serviram para desenvolver uma política de conciliação de classe, realizando uma administração multipartidária, com uma frente ampla tal como está situada, com a esquerda liberal no palanque e o Centrão aplaudindo seu discurso de amizade. A burguesia nunca comeu tanto caviar quanto na era Lula. Enquanto a ilusão de progresso social era implementada, a exploração era dupla, tanto pelo Estado (que participa do processo de acumulação do Capital, tanto como agregador de influência como um capitalista secundário) como pela Burguesia. Essa última, motivada pelo progressivo acúmulo e concentração capitalistas, não tardou a plantar uma semente que daria início àquele ciclo anteriormente apresentado. Em suma: a conciliação de classe efetivada pelo Partido dos Trabalhadores estabeleceu as bases para a criação de um monstro discursivo, que fora moldado pelos movimentos antipetistas (movimentos esses que sinalizaram a crise do Capital em 2013, que já corria a passos de tartaruga, nas entranhas do planalto). A queda de Dilma e a ascensão do bolsonarismo até a entrada do ser mais repugnante que nasceu em solo brasileiro, foram pré-moldados pela burguesia para evitar a anarquização do processo de autovalorização do Capital em crise.
O PSOL caminha para tal ciclo, e parece querer se inserir (mesmo que seus discursos mostrem o contrário). O que chamo de “lulismo psolista” nada mais é do que a herança mais perversa que o PT destinou à banda majoritária do partido socialista desde o princípio. O “Heloisismo”, “Freixismo” e o mais nítido de todos: o “Boulismo”, reflete a estrela vermelha e branca que o partido carrega. Todos fracassados. O último deles, com a rápida filiação de Guilherme Boulos e sua rápida vitória nas prévias após o “beijo à mão” de Lula antes de sua prisão, em 2018, mostra que o “fisiologismo solar” caminhava muito antes desse congresso.
No domingo (29 de agosto), a queda de um partido se aproximou, e a ascensão de uma sigla majoritariamente fisiológica se concretiza cada vez mais, despojando ao campo da abstração toda aquela luta pelo socialismo real, que “arranque pela raiz” o capitalismo parasitário, que uma minoria ainda filiada trava. Uma minoria marginalizada frente os diretórios Brasil afora. Mas uma organização sólida, que luta para que um último raio do gigantesco Sol Vermelho, possa iluminar a sociedade, já consumida pelas trevas produzidas pela consolidação da hegemonia da burguesia no espaço eleitoral.