Um país que se pretende grandioso não pode continuar sendo construído sobre os cadáveres dos seus habitantes originários. O respeito aos povos indígenas e o reconhecimento dos seus direitos é base para a convivência pacífica e sustentável. A literatura indígena contemporânea aponta para a necessidade de aprender com a sabedoria desses povos para que possamos evoluir no conceito de humanidade.
Defender os indígenas brasileiros é defender a vida sustentável no planeta. O genocídio dos povos indígenas, sobretudo do povo Yanomami, exige posicionamentos firmes e urgente tomada de decisões. Mapeamentos de biomas, feitos no Brasil nas últimas décadas, revelam que as áreas com matas nativas mais preservadas são, na maioria, territórios indígenas.
Os povos originários desenvolvem fortes vínculos com a natureza e vivem em profunda simbiose com ela. Assim, a proteção das florestas é indissociável das vivências deles, mesmo que venham a ter as próprias vidas ameaçadas por causa dessa atitude, como os noticiários costumam relatar continuamente. Infelizmente, invasões e violências se repetem de forma reiterada ao longo do tempo, desde o período da colonização europeia.
Os modos de produção desenvolvidos no seio das sociedades capitalistas se realizam de forma diametralmente oposta às dinâmicas vivenciadas pelos povos originários em sua diversidade de culturas, de línguas e de crenças. Esse embate tem provocado conflitos e engendrado resistências, nos quais os indígenas têm sido alvo de ataques e os seus territórios, de invasões. É nesse contexto que pessoas do mundo inteiro se indignaram, nos últimos dias, com imagens da dizimação dos Yanomamis. Imagens fortes de destruição e morte dos indígenas por descaso, incompetência e má fé.
A literatura de autoria indígena contemporânea brasileira, escrita por eles denuncia esses conflitos e contribui para desconstruir uma visão etnocêntrica deslocada da realidade desses povos. Durante séculos, essa visão eurocentrada, parcial e retrógrada vigorou no Brasil e foi, na maioria das vezes, responsável por estereótipos e por ideias equivocadas a respeito desses povos. Em decorrência disso, há um grande desconhecimento acerca das culturas desses povos, por parte da sociedade não indígena. A perpetuação desse estado de coisas vem constituindo uma chave decisiva para a disseminação do preconceito e das violências cometidas.
No contexto de produção dessa vertente da literatura brasileira, o xamã Davi Kopenawa escreveu um livro essencial para a compreensão da cultura do seu povo, uma obra monumental chamada A Queda do Céu: Palavras de um xamã Yanomami. Produto de um longo diálogo com o antropólogo francês Bruce Albert, o livro alerta sobre a importância da floresta.
Em epígrafe, lemos na obra A Queda do Céu: Palavras de um xamã Yanomami: “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa.” O povo Yanomami elabora um conceito mais amplo para a floresta. Para eles, esse espaço sagrado é composto pela flora, pela fauna, pelas montanhas, pelos rios, pelas pessoas que ali vivem e também pelos espíritos que habitam esses lugares.
Assim, a expressão subjetiva dos intelectuais indígenas, presente nos textos literários e demais manifestações artísticas, favorece o acesso aos universos simbólicos e cosmológicos desses povos, de forma a possibilitar aos leitores um conhecimento diferenciado dessas culturas. Percebemos aqui o modo como a literatura se antecipa aos métodos históricos e antropológicos na tarefa de desvendar os mistérios da humanidade.
A força de um povo, sua capacidade de resistir às adversidades, sua resistência, sua capacidade de recomeçar: superar o trauma, chorar os mortos e seguir em frente está relacionada com a terra, com o território sagrado ancestral. A respeito dessa resiliência de sua grande família indígena, Davi Kopenawa esclarece:
“Somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as nascentes dos rios muito antes de os meus pais nascerem, e muito antes do nascimento dos antepassados dos brancos. Antigamente, éramos realmente muitos e nossas casas eram muito grandes. Depois, muitos dos nossos morreram quando chegaram esses forasteiros com suas fumaças de epidemia e suas espingardas. Ficamos tristes, e sentimos a raiva do luto demasiadas vezes no passado. Às vezes até tememos que os brancos queiram acabar conosco. Porém, a despeito de tudo isso, depois de chorar muito e de pôr as cinzas de nossos mortos em esquecimento, podemos ainda viver felizes. Sabemos que os mortos vão se juntar aos fantasmas de nossos antepassados nas costas do céu, onde a caça é abundante e as festas não acabam. Por isso, apesar de todos esses lutos e prantos, nossos pensamentos acabam se acalmando. Somos capazes de caçar e de trabalhar de novo em nossas roças” (KOPENAWA, 2015, p. 78-79).
O reconhecimento dessa pluralidade de vozes que compõem o tecido social brasileiro é indispensável para despertar a curiosidade sobre as muitas histórias que nos constituem como nação. Só a partir da investigação dessas narrativas plurais será possível compreender que as versões que a história oficial omite agregam fatos e relatos surpreendentes que são fundamentais para a compreensão do que nós, povo brasileiro, realmente somos.
Problematizar a história, desmistificar os cânones, ouvir as vozes silenciadas no processo conflituoso de construção da suposta nacionalidade é essencial quando se busca o conhecimento, de forma honesta e genuína. O contrário disso é ocultar e mentir, é agir em favor de quem deseja calar as pessoas para não lhes reconhecer os direitos, mesmo que para isso tenham que exterminar populações inteiras.
Basta de extremismos fascistas. O conhecimento existe para libertar as pessoas e não para acorrentá-las a ideários de dominação, manipulação e morte. Os povos indígenas são os primeiros habitantes dessa terra, hoje chamada Brasil.
Um país que se pretende grandioso não pode continuar sendo construído sobre os cadáveres dos seus habitantes originários. O respeito aos povos indígenas e o reconhecimento dos seus direitos é base para a convivência pacífica e sustentável. A literatura indígena contemporânea aponta para a necessidade de aprender com a sabedoria desses povos para que possamos evoluir no conceito de humanidade.1
Nossas fontes
↑KOPENAWA, Davi; BRUCE, Albert. A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
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