O mundo parou num estacionamento chamado pandemia. No Brasil está difícil encontrar tema pertinente para discussão que não envolva a pandemia ou a crise política. Hoje me parece menos doloroso refletir sobre a relação do ser humano com a morte do que falar de política.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Creio que nos dias atuais não há uma pessoa adulta, em plena capacidade mental, que não reflita sobre a morte, sua e das pessoas que estão próximas. Isso não quer dizer que todos tenham medo da morte. E enquanto para alguns o medo maior é da própria morte, para outros o medo é de perder alguém.
A morte é um conceito criado pelo homem, assim como o luto. Todas as culturas, em qualquer tempo, tiveram ou tem seus ritos mortuários, como a mumificação, o enterramento, a cremação, o velório, etc. Para Edgar Morin, quando o homem se vê diante da morte, desencadeia uma espécie de trauma que o conduz a um esforço de adaptação a essa realidade, surgindo daí a crença na imortalidade. O horror e o medo surgem na consciência humana ainda na infância, no primeiro contado da criança com a morte, quando a essa vê sua individualidade totalmente confrontada. A nossa individualidade é mais confrontada quando aquele que morre está mais próximo de nós. Vemos, então, a vontade daquela pessoa negada, assim como a nossa própria vontade.
Essas concepções parecem explicar, de certa forma, as reações observadas diante da pandemia. No Brasil, a pandemia chegou mais tarde, em relação a grande parte do mundo. Antes dela se instalar aqui, o mundo assistiu horrorizado e assustado o crescimento desenfreado do número de mortes, principalmente no norte da Itália. Em 25 de março, na semana em que o Brasil lançou decretos com regras de isolamento social, a Itália contabilizava o imenso número de 7,5 mil mortes por Covid-19. No Brasil eram 232 mortos, mas sabíamos que o isolamento evitaria que acontecesse conosco o que estava acontecendo na Itália e em outros países. Corremos para as nossas casas, esvaziamos as ruas, abastecemos nossas dispensas como se estivéssemos em guerra – indício até de uma histeria coletiva. Tivemos muitos pesadelos, com medo de morrer ou de perder alguém que amamos.
Hoje, o Brasil ultrapassa as 72 mil mortes, no mundo são mais de 572 mil. E o que vemos na população é: muita gente não querendo mais saber de isolamento, reclamando até mesmo do uso de máscaras. Estaremos, então, na fase pós-traumática, adaptados à nova realidade, acreditando na imortalidade, como apontou Morin?
Morin também fala da noção de nação, que para ele se sobrepõe a individual. A existência de um indivíduo está vinculada ao grupo em que vive. O autor fala do caráter de guerra do Estado. Durante o combate, através do ideal de nação e da propaganda, o Estado faz com que o indivíduo perca o medo da morte, na medida em que quem está em perigo é a nação e não mais o indivíduo. Portanto, o Estado se apropria do indivíduo. A morte não é mais individual e traumática. Os mártires, aqueles que morrem em combate, são heróis da pátria.
Será que deixamos de ser pais, filhos, amigos? Deixamos de ser indivíduos e nossas vidas pertencem à nação, o importante é salvá-la? Sem conclusões, sem respostas… Pergunto ainda: o que houve com aquele medo da morte de março de 2020?12