A mosca, um animal irracional, desprovido de consciência, reproduz suas ações através de um instinto genético (uma “cultura” inserida em seu DNA). O voo dessa pequena praga que, provida de uma estratégia inata, um “instinto selvagem” do ato de voar, constitui numa das mais belas cauções biológicas. Quando está diante de um doce, por exemplo, concentra-se apenas em adquirir aquilo que poderá nutri-la naquele espaço de tempo. O instinto da Drosophila melanogaster, em inúmeras ocasiões, chega a ser infalível: rápidos movimentos, uma gama possibilidades encontradas de escapatória às armadilhas da natureza, devido a seu “panóptico” natural. A possibilidade da vigilância per instinctus dessa minúscula criatura, é o ponto de partida para este artigo.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
A mosca é o animal que, apesar de possuir um dos menores ciclos de vida do reino Animalia, é um dos seres que mais se reproduz. Se certo espécime possui a capacidade física de perceber o mundo que a cerca e, para se manter viva (e assim perpetuar sua linhagem), demonstra um instinto cuja resposta neuronal apresenta uma celeridade quatro vezes maior que a de um ser humano (a mosca apresenta cerca de 100 mil neurônios, enquanto o nosso cérebro detém de apenas 25 mil). Além disso, sua capacidade de replicação é gigantesca. Ante o exposto, estamos diante de um animal que constantemente nos vigia. Uma vigilância natural, instintiva, construída devido ao seu DNA e a sua variabilidade genética. Para a mosca, não somos nada além de um apanhado de seres que ocasionalmente dispõem de uma fartura nutritiva, independente de qual gênero ou estado de conservação tal refeição possa se encontrar. Ela está na maternidade e no cemitério. A mosca está em todo lugar. É uma praga natural.
Nesse contexto, indo de encontro à nossa práxis hodierna, o Capital está em constante autovalorização. A burguesia acumula, concentra e centraliza o capital, fruto da exploração da força de trabalho, antes pertencente ao proletariado. Nada pode ser dissociado do sistema de produção pela produção. Estamos diante de uma caução histórica que atribui à classe dominante o poder abstrato de controle social. Não mais um controle associado à coação da liberdade. Han (2018) acredita que a ideia de “liberdade individual”, inserida no sistema capitalista é “uma servidão na medida em que é tomada pelo capital para sua própria multiplicação”1. Esse processo de multiplicação e obtenção do acúmulo de capital inconscientemente, estruturado numa “alegoria” de liberdade individual, e que, de modo célere, se modifica e se amplia, é a raiz do aumento do sofrimento psíquico concernente ao sintoma social de uma massa que, para FREUD (2013) é “extremamente influenciável e crédula; é desprovida de crítica”2.
A massa à qual me refiro é a do proletariado, a classe que vende sua força de trabalho em troca de um salário (mais-valia). O sofrimento da psique humana, colocando em seu devido lugar, isto é, em sua práxis histórico-social, é proveniente dessa exploração que está em constante transformação e se proliferação, semelhante às moscas. O capitalismo, tal qual o animal, se estrutura num panóptico que tenta superar as leis da natureza. Ele nasce infantil, com uma consciência apregoada a princípios de acumulação acelerada, visando sua sobrevivência, ao mesmo tempo que se reproduz em instituições de convívio social. O capital é concentrado, visando uma eliminação parcial da concorrência e centralizado, estruturando o panóptico cultural, o artefato da vigilância sob o controle dos 1% mais ricos. A consolidação da hegemonia burguesa3sobre a práxis concerne à criação e ao aperfeiçoamento de um sistema de vigilância que não mais reprime, mas desenvolve, principalmente, uma forma de “exploração da liberdade”, como foi dito anteriormente.
O capitalismo é, alegoricamente, um “conglomerado de moscas”, que sobrevoam sobre um “doce social”, produzido pela classe trabalhadora, a fim de explorá-lo até se estafar, e obter o máximo possível de matéria para assim crescer e se multiplicar. Resta ao ser humano, apenas uma ínfima parte da guloseima, não contaminada pelas “bactérias sociais”. Tais “germes da práxis”, em outras palavras, são tudo aquilo que há de mais dantesco na estrutura social capitalista: o racismo, machismo, LGBTQIA+fobia, padrões superficiais de beleza etc. Em suma, toda forma de segregação que a sociedade só consegue superar se for contrária à dominação da classe dominante, pelo tácito fator do estabelecimento da hegemonia de classe, que se deve aos aparelhos de higienização estrutural, institucional e cultural. Dando prosseguimento à análise, apenas as migalhas restam ao trabalhador, que manifesta severa frustração psicológica, agregando gravíssimas patologias psicossociais.
Por fim, as “Moscas sociais” servem de alegoria para o acelerado sistema capitalista. O panóptico é constante, veloz e inconsciente, imperceptível aos olhos do outro, o que permite a exploração da liberdade. A mosca é a manifestação alegórica do dono dos meios de produção, do inconsciente coletivo, de tudo aquilo que a classe trabalhadora acredita ser “livre”. A medida que ela acredita nessa ideia de “liberdade”, mais é explorada. A luta enfraquece no meio de sociabilização. A dominação estruturada nesse poder (que é abstrato) cumpre a cada momento sua tarefa para consolidação de sua hegemonia. Uma mosca pode morrer, da mesma forma que um grande empresa pode perder sua influência, mas outras centenas nascem e participam do mesmo processo, ciclicamente, construindo oligopólios e reestabelecendo a centralização hegemônica dos meios de produção. A luta de classes radical se faz vital, à medida que o “Eu-proletário” torna-se constructo da massa explorada, conduzida pelo Inconsciente, o Outro (a burguesia). Marx (2010) afirma que “ser radical é agarrar as coisas pela raiz. E a raiz do homem é o próprio homem”4. Portanto, a raiz do homem inserido na práxis é a sua condição histórica e material e, no caso proletário, a reconstrução de sua consciência de classe, de luta contra o sistema, consolidando bases capazes de sufocá-lo e implodi-lo, de modo que efetue uma “esterilização sistêmica”, para que a classe oprimida possa finalmente se prover do doce sabor da produção para sua própria existência, longe das correntes panópticas da Drosophila burguesa.