Este é o primeiro de uma série de textos que têm por finalidade a incômoda função de repetir obviedades tão necessária neste funesto momento histórico, quando forças que atuam pautadas na negação da verdade como elemento de manutenção de hegemonia, é necessário reafirmar o óbvio como ponto de partida para qualquer embate maior.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Em março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia de covid-19 (BBC, 2020), era o marco inicial do fato que daria a tônica de todo o ano de 2020. O pânico inicial mediante o desconhecido, somado ao medo causado pela letalidade do vírus parou o mundo.
Como afirma Mészarós (2011)1, não há capitalismo sem circulação, seja ela de indivíduos ou bens e na periferia do mundo a marcha para a morte seguiu com as atividades de trabalho mantidas além do essencial, em especial no Brasil, onde não houve por parte do governo federal decreto de quarentena de nenhum tipo, afinal, o presidente Jair Bolsonaro estava cumprindo seu objetivo, efetuar um genocídio.
Momento histórico: os sujeitos históricos são os sujeitos vivos
A discussão filosófica sobre os sujeitos passa por dois conceitos essenciais, um de cunho gramatical, onde tem o sentido de tema do discurso e outro, de matriz kantiana onde toma o papel de capacidade autônoma de ações ou iniciativas, em contraponto a passividade do ser “objeto” (ABBAGNO, 2007)2.
Se os sujeitos têm a capacidade de agir, podemos entender que situações que geram incapacidade total de ação anulam os sujeitos, portanto, a morte seria uma anulação dos sujeitos e seu papel histórico, logo, os sujeitos históricos são os sujeitos vivos, mas a quem interessa que os sujeitos sejam anulados e quais sujeitos?
Sobre os sujeitos anulados, é importante pensar sobre quem historicamente são os sujeitos mais oprimidos para então compreender porquê a estrutura reproduz a morte dos mesmos sujeitos em diferentes situações e como isso acontece. Não há espaço para pensar que os grupos mais afetados pela pandemia estão sendo afetados por acaso ou por desígnios divinos.
Em julho de 2020, segundo a Revista Terra (2020)3 negros e mulheres eram os grupos mais afetados pela pandemia de covid-19, a informalidade do trabalho aparecia como um fator determinante em tal situação, a máquina de matar moldada pelas políticas públicas de omissão, reforço e perpetuação da estrutura de uma pacto social excludente com pilares de classe, raça e gênero interconectados, mais um vez mostrou sua eficácia face uma nova situação.
O medo é um afeto biopolítico por essência
Para Espinosa em sua “Ética” o medo é uma tristeza ligada à uma coisa no passado ou futuro da qual há dúvida sobre a realização (ESPINOSA, 2007)4, enquanto para Safatle citando Hobbes o medo é o afeto central para o respeito às normas, portanto um afeto de controle e regulação sem o qual é impossível a existência de sociedades organizadas nos moldes modernos.
Os afetos, ou seja, emoções têm função central no aspecto biopolítico, tanto para fins de controle quanto de emancipação e êxtase, por vezes congregando em si várias funções. Safatle coloca que o medo e a esperança compartilham a temporalidade da esperança, seja pela redenção do por vir ou pela perda da esperança e das expectativas.
Se o medo é um afeto que favorece o controle por quem o impõe, é também um afeto emancipatório quando associado a perda de um horizonte ou situação que gera bem-estar, portanto, o medo da perda de algo estimado enquanto um valor coletivo pode sim produzir experiências emancipatórias ou de resistência.
O contexto pandêmico nos coloca mais próximos do medo da morte, do adoecimento, da hospitalização, o medo que vem lentamente permeando toda a sociedade da perda, do fim das estruturas como conhecemos e a mudança abrupta na forma de viver cotidianamente, a ausência de um elemento de redenção torna estes vários medos ainda mais potentes, portanto, intensifica o controle e suas possibilidades.
O horizonte depende da vacina
Se o medo é o afeto do controle e também da emancipação, a sua função de controle tem sido usada magistralmente pelo governo de Jair Bolsonaro, que cumpre fielmente a sua função de desorganização e supressão de qualquer horizonte emancipatório, como lutar contra os retrocessos diversos e os ataques ao mínimo de dignidade para o povo com o medo constante da morte?
O temor de adoecer a si e aos seus paralisa os corpos, não apenas indivíduos mas os coletivos que lentamente sucumbem à impotência de não poder agir como gostariam, no momento em que Jair Bolsonaro está encharcado de sangue de centenas de milhares de brasileiros, em que lembramos de tantos que morrem sufocados, seja pela falta de ar, oxigênio hospitalar ou pelo presidente ter transformado o país numa sucursal do inferno onde viver é como uma asfixia lenta e dolorosa, não há meios de agir seguramente.
O tão atacado sistema único de saúde (SUS), os institutos de pesquisa, as universidades demonizadas pelos obscurantistas que ditam os rumos do Brasil, promoveram a esperança nesta hora sombria, cada vacina carrega em si um pequeno pedaço de liberdade, a liberdade de viver como antes que já não basta, de respirar um pouco no momento em que o ar é escasso e pútrido e de pautar novos horizontes.