OS MAIS JOVENS, até pouco tempo, não sabiam o que é conviver com altos índices de inflação. Mas a realidade está mudando e é importante saber quem ganha e quem perde quando se tem uma hiperinflação. Os mais velhos lembram bem da inesquecível inflação da década de 1980. No final dessa década, a inflação no Brasil chegou a 80% ao mês. Quando o indivíduo recebia o salário, precisava sair correndo para fazer as compras, pois os produtos chegavam a ser remarcados mais de uma vez ao dia. Se não comprasse tudo logo, aquele dinheiro compraria a metade no final do mês.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Foi nesse período que surgiram os grandes atacados de gêneros alimentícios e os kits de produtos, os famosos “leve 3, pague 2”, que ressurgiram há uns 4 anos. O consumidor precisava comprar a maior quantidade de mantimentos possível no início do mês, para garantir a sobrevivência até o final do mês. O salário aumentava mensalmente, mas se o aumento não chegasse antes do pagamento, o indivíduo estava perdido. Isso sim era viver perigosamente.
Os supermercados criaram a função de remarcador. Ainda não existia o código de barras. Todos os produtos recebiam uma pequena etiqueta adesiva com o preço. Nos corredores dos supermercados, sempre encontrávamos muitos remarcadores com suas maquininhas barulhentas que chamávamos de pistolas. Era a pistola mais temida da época, com ela éramos assaltados diariamente. Muitas vezes, encontrávamos produtos com uma pilha de etiquetas. Mas logo os donos de supermercados perceberam que não era uma boa ideia. Muitos clientes arrancavam as etiquetas de cima e deixavam apenas a última, com o preço menor. Era comum ver os clientes revirando as prateleiras, em busca de um produto esquecido lá no fundo, que não tivesse sido remarcado. Está achando que era diversão? Que nada, era instinto de sobrevivência.
A inflação chegou ao ponto em que para comprar um pacote de biscoitos, era preciso levar uma pilha de dinheiro. Para termos uma ideia do que foi a inflação a partir de 1975, podemos ter como base o salário mínimo que naquele ano era Cr$ 532,80 e em 1985 chegou a Cr$ 600.000,00. O salário mínimo de 1975 comprava 2kg de pão francês no início de 19831. Em 1986, o presidente José Sarnei lançou uma nova moeda, o cruzado, para tentar “tapar o sol com a peneira”, como faz o governo atual criando a nota de 200 reais. Em pouco mais de dois anos, o salário mínimo foi de Cz$ 804,00 para Cz$ 40.425,00. Mas não pense que esses aumentos de salário significavam aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores. Ao contrário, os aumentos de salário estavam sempre defasados em comparação com a inflação.
Quando os preços de determinados produtos agropecuários não acompanhavam a inflação, víamos na TV as cenas dos produtores inutilizando os produtos. Era uma forma de levar o produto à escassez e, assim, elevar o preço. E isso acontecia enquanto milhares de brasileiros passavam fome. Os pequenos produtores não possuíam recursos tecnológicos para armazenar seus produtos e esperar o aumento dos preços ou destinar à exportação. Sem poder competir com as grandes empresas no mercado externo e com o baixo poder aquisitivo dos brasileiros, pequenos produtores agropecuários e pequenas indústrias faliam. As grandes empresas cresciam cada vez mais, na medida em que dominavam o mercado. Muitas das grandes empresas que conhecemos hoje se consolidaram naquele período.
Empresários menores abandonavam os negócios e passavam a especular no mercado financeiro. que era favorecido pela alta dos juros. Com isso, o nível de produção diversificada caia vertiginosamente. Os altos juros aniquilavam a possibilidade de financiamentos para a classe média assalariada. A probabilidade dessa classe média não poder saudar suas dívidas era enorme, considerando a dificuldade para acompanhar a inflação. Para as entidades financeiras era mais interessante trabalhar com o dinheiro dos clientes e oferecer rendimentos que nunca acompanhavam a inflação.
Todos que possuíam um excedente financeiro, por menor que fosse, precisavam fazer algum tipo de aplicação, mesmo que fosse a poupança, que oferecia o menor rendimento. Muitos compravam dólares, que era a melhor forma de acompanhar a inflação, mas que, ao mesmo tempo, contribuía para deixar a moeda estrangeira mais forte, desvalorizando cada vez mais a moeda nacional.
Segundo o discurso da direita, com o aumento das exportações, que alavanca a produção industrial e eleva o número de empregos, o trabalhador seria beneficiado de cima para baixo. E o que não é dito? Em primeiro, que com o desenvolvimento tecnológico, tanto a agropecuária quanto a indústria exigem cada vez menos mão-de-obra. Em segundo, que no Brasil a oferta de mão-de-obra é imensa, o que reduz ao mínimo os salários. Em contrapartida, os produtos básicos de consumo têm seus preços elevados, na medida em que o interesse dos produtores se volta para o mercado externo. Consequentemente, o trabalhador precisa trabalhar muito mais, enquanto cai o seu poder aquisitivo e, por conseguinte, reduz-se sua qualidade de vida. Uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), de 1983, ilustra perfeitamente o que a inflação significa na vida do trabalhador.
“Para o Estado de São Paulo, em 1959, os dados levantados pelo DIEESE informam que o trabalhador necessitava trabalhar 65 horas e 05 minutos para comprar a Ração Essencial. Em 1982, numa fantástica elevação de preços, o trabalhador para comprar a mesma ração teve que trabalhar 131 horas e 30 minutos, o dobro de 1959 (Folha Regional de Caxias do Sul, 28.05.1983, p. 7).”2
Vemos a política da direita, neoliberalista, avançar dia a dia, desde 2016. No começo, somente os olhares mais atentos percebiam estes avanços. Hoje é nítido, para qualquer um, que temos uma inflação beirando a hiperinflação, com alguns produtos da cesta básica aumentando em mais de 100% em poucos meses e o dólar subindo, ou seja, nossa moeda desvalorizada e os produtores preferindo o mercado externo. Podemos usar o exemplo do arroz, o vilão da cesta básica nos últimos meses. Segundo o Canal Rural, em agosto de 20203, as exportações brasileiras de arroz cresceram 93% em relação a agosto de 2019 e a expectativa é de que as vendas externas do produto ultrapassem o recorde anterior, que ocorreu na safra 2010/2011. Pergunto: quem está vibrando com isso? O consumidor ou o produtor? O trabalhador ou o empresário?
A “política de cima” torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. A política de esquerda, que eu chamo de “política de baixo”, aposta no crescimento do país a partir da redução das desigualdades sociais, impulsionando os pobres a saírem da pobreza, através de programas sociais. Mas os ricos, que apesar de nunca terem deixado de ser beneficiados, se ressentiram por cada moeda que era dada aos pobres. Em seu discurso, a política de esquerda era responsável pelo desemprego e somente a direita poderia salvar a pátria, ajudando os ricos a ajudarem os pobres. Deixo aqui duas questões para reflexão: não é mais fácil ajudar diretamente quem realmente precisa de ajuda? Um país com menos desigualdade, consequentemente com menos criminalidade, mais limpo e com um povo mais educado, não é um país melhor, inclusive para os ricos?45