O que seria narrativa? Se você colocar aí no google qual é o conceito de narrativa, o primeiro significado que vai aparecer é:Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Narrativa é uma exposição de fatos, uma narração, um conto ou uma história. As notícias de jornal, história em quadrinhos, romances, contos e novelas, são, entre outras, formas de se contar uma história, ou seja, são narrativas.
Em uma linguagem bem simples, seria expor um acontecimento ou uma série de acontecimentos, podendo condizer ou não com a realidade, podendo ser manipulada de acordo com os interesses de quem a conta. Afinal não há neutralidade na narrativa (ela também depende de onde pisam os pés de quem a conta), esperasse é claro que a narrativa, apesar da tendência ou interesse, seja próxima da realidade, condizente com aquilo que se vê no dia a dia, para não cair na falsa narrativa. Em outras palavras, que a narrativa seja honesta.
Umas das marcas da atual gestão da Prefeitura de São Paulo, comandada pelo Prefeito Ricardo Nunes, tem sido o jogo de narrativas no que diz respeito a população de rua da cidade, parece haver uma cartilha que seguem os demais secretários que cuidam das pastas da população de rua, para manter a mesma narrativa no que diz respeito aos moradores de rua, ou talvez entram em acordo sobre como usar a narrativa. Mas vejamos alguns dos traços, de como a história vem sendo contada.
O prefeito Ricardo Nunes, tem utilizado entre algumas de suas narrativas, aquela que passa a ideia de que está nas ruas quem quer. Em fevereiro deste ano (2023) afirmou a Rádio Bandeirantes: “Não sei porque essas pessoas ficam nas ruas”
O prefeito se referia a questão das barracas, dizia não entender porque as pessoas não aderiram às alternativas que ele oferecia, entre elas a Vila Reencontro, ou os albergues da cidade. Dizia não entender, pois havia alternativas para todas as pessoas. Sabemos que esse discurso difere da realidade, ou seja, em outras palavras seria como insinuar que essas pessoas estão na rua porque querem.
Quando se desconhece, ou finge desconhecer, a realidade da pobreza que leva as pessoas às ruas, ocultando através da narrativa os reais motivos que levam as pessoas a esta situação, se comete pobrefobia, pois culpa o pobre pela sua pobreza.
Outras falas, neste sentido, foram as narrativas no artigo para a Folha de São Paulo de 25/02/2023, que levava por título “Rua não é endereço, e barraca não é lar”, entre elas: “O objetivo não é recolher barracas, mas reconstruir vidas de parte de uma população empurrada para as ruas.”1
Quando não há alternativas de moradia, com dignidade e autonomia, coisa que o orçamento bilionário permite, então a finalidade é tomar barracas (todos os dias com violência e repressão) e não reconstruir vidas, pois quando se toma o único refúgio que possuem os moradores de rua, então se destroem ainda mais as vidas tão destruídas.
Ou então ao afirmar: “Atualmente, temos a maior rede socioassistencial da América Latina, com mais de 20 mil vagas de acolhimento e capacidade e planejamento para atendimento de quase 32 mil pessoas em situação de rua”
É claro que numa população de 31.884, de acordo com o último censo da Prefeitura de São Paulo, ou 52.000 de acordo com a contagem, via CadÚnico da UFMG, a maior rede tem que ser a de São Paulo na América Latina, tendo em vista que talvez nesta cidade esteja a maior quantidade de pessoas morando nas ruas da América Latina.
Se há 20 mil vagas de acolhimento, segundo o próprio prefeito, a conta não fecha, então não há capacidade para atender 32 mil pessoas, ou 52 mil de acordo com a UFMG. Contradição na própria narrativa de Ricardo Nunes, a fala do prefeito não reflete a realidade.
Por incrível que pareça essa narrativa tem sido utilizada por alguns secretários e assessores, que colocam a responsabilidade das pessoas morarem nas ruas nelas mesmas. São narrativas cobertas de pobrefobia, pois colocam a culpa da condição social nas vítimas e isentam as estruturas que geram a pobreza e os pobres, isentam a gestão de suas falhas, a culpa de estar na rua é da/do moradora(or) de rua, o tal “fica na rua quem quer”.
A narrativa pobrefóbica, também é fortalecida por ações, fora algumas que citamos acima, no mesmo sentido, entre elas:
- A Vila Reencontro, que o secretário de Assistência Social chama de alternativas de moradia, neste espeço há: Horário de entrada e saída, as pessoas tem que ter até dois anos de rua, podem ficar até dois anos neste local, uma ONG tutela (ou toma conta do espaço e da população de rua). Ou seja, um albergue moderno, pois você que lê este texto não vive assim na sua casa, porque então a população de rua tem que ser destinada a falta de autonomia naquilo que é chamado de alternativa de moradia? Porque do policiamento constante? Porque da infantilização do povo de rua? como seres que não possuem a capacidade de morar com autonomia e dignidade, ou a exigência de perfeição. Você que mora na sua casa não possui problemas? Isso fortalece a ideia de que as pessoas que moram nas ruas são incapazes ou inferiores, uma ideia pobrefóbica.
- O Cerco a Praça da Sé, com grades e força repressiva, e o discurso que aquele espaço foi devolvido a população, coloca a população de rua como não sendo parte da sociedade. Mostra que estar no centro de São Paulo é um privilegio que poucos podem pagar, a pobrefobia que coloca o centro como um lugar que não é para os pobres.
- O Gradeamento da Praça Princesa Isabel, o gradeamento dos viadutos, a arquitetura hostil patrocinada pela prefeitura que também mostra que uma cidade sem alternativas de moradia para os mais pobres, é uma cidade que se arma para evitar até os lugares de refúgio para quem não tem casa.
As antigas fundações casas, Febens, foram transformadas em albergues para famílias, readaptadas, estruturas de cadeias, fechadas dentro de si mesmas, em extremos da cidade (longe do centro) destinadas para grupos familiares de rua. Mostra a forma vertical de pensar as políticas para o povo de rua, ações que se traduzem no “Para quem mora na rua, esse tipo de espaço tá ótimo”, não visam a dignidade, mas as migalhas.
Em uma gestão, que insiste nesta narrativa, que se intitula humanizada quando se refere às suas ações para o povo de rua, que diante destes discursos e ações têm mostrado a pobrefobia e não o tal humanismo. Quando a narrativa coloca a responsabilidade no morador de rua, o fato de morar nas ruas, isentando a estrutura que gera e reprime o pobre, então a prefeitura através do discurso e ações fortalece a pobrefobia e incentiva o restante da sociedade, que ao escutar as falas do Prefeito, secretários e assessores pensa: “Estão na rua porque querem”.
Nestas ações e narrativas não há humanização da vida, mas sim a violência e desumanidade que num último estágio conduzem a pior das violências da pobrefobia: a necropolítica.