Para começar este texto, é necessário sabermos o significado de dois termos, para podermos tentar entender o que cada um traduz e no que isso implica na realidade. A palavra “tutela”, segundo o dicionário online de português, diz:Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
“Responsabilidade legal que alguém assume com o intuito de administrar os bens, representar legalmente uma pessoa que não atingiu a maioridade, que foi interditada ou foi considerada desaparecida. [Por Extensão] Auxílio ou proteção que se oferece a alguém: é um péssimo aluno, mas tem a tutela do professor. [Figurado] Relação de subordinação ou de dependência; sujeição: desempregado, está sob a tutela dos avós.”
A tutela, segundo o significado acima, diz respeito a tomar conta de alguém incapaz, menor de idade, pessoa interditada, subordinada, dependente… quer dizer que uma pessoa não possui a capacidade de viver por si só. Contrariamente à tutela, temos a palavra “autonomia”, que de acordo também com o dicionário online de português, diz:
“Direito ao livre-arbítrio, à tomada de decisões por vontade própria, que faz com que alguém esteja apto para tomar suas próprias decisões de maneira consciente; independência, liberdade. Competência para gerir sua própria vida, fazendo uso de seus próprios meios, vontades ou princípios. [Política] Direito dado a uma nação de se governar de acordo com seus próprios regimentos ou leis; autarquia. [Mecânica] Para um veículo movido a motor (navio, avião, automóvel etc.), distância percorrida com o consumo total do combustível a bordo. [Filosofia] Para Kant, faculdade do ser humano de se autogovernar de acordo com seus padrões de conduta moral sem que haja influência de outros aspectos exteriores (sentimentos, repressões etc.).”
A autonomia, ao contrário da tutela, diz respeito à liberdade de tomada de decisões, liberdade para gerir a própria vida, independência, autogestão… Visa, acima de tudo, a liberdade e não o controle (que é o que visa a tutela).
Um dos pontos que sempre questionamos, no que diz respeito à população de rua, é a falta de participação do povo de rua na construção das políticas das quais eles(as) serão alvos. A tal verticalidade na construção é outra questão que fica: se o povo de rua pudesse decidir entre tutela e autonomia, o que decidiria?
Há muitas políticas voltadas para o povo de rua em várias cidades do Brasil, mas quero olhar para a cidade de São Paulo, que é o lugar onde convivo e luto com a população de rua. É aqui que penso e me movimento.
Quando se fala em autonomia ou alternativas de moradia, na mesma frase a tutela não tem espaço; quando se fala em albergues, não se pode falar em autonomia, pois são organizações que tomam conta desses espaços, há regulamentos impostos (sem participação do povo de rua), ONGs que recebem milhões de reais dependendo da quantidade de serviços para tutelar a população de rua. Os albergues costumam ser um fim em si mesmos, não há a tal porta de saída no pós-acolhimento. A porta de saída visando a autonomia depende mais da pessoa que está acolhida do que da política.
Muitas gestões falaram em autonomia, algumas levavam autonomia no nome; outras, como a atual, também falam muito em autonomia, inclusive têm se apropriado do termo “casa primeiro” para um projeto de contêineres, associando a moradia a essa política pública. A semelhança dos albergues, nessa proposta há uma ONG tomando conta dos contêineres, estabelecendo as regras de convívio, determinando o prazo de estadia de cada família no espaço. Sendo assim, é possível falar em autonomia ou moradia nesse projeto?
A política de atendimento é uma política de tutela quando se visa à elevação dos números, quando não há busca por saídas efetivas da rua. Podemos ver esse ponto no título de uma matéria da Folha de São Paulo de junho deste ano:
“Prefeitura de SP ultrapassa 60 mil atendimentos no início da Operação Baixas Temperaturas 2023”
De acordo com a própria prefeitura de São Paulo, pelo censo realizado pela própria gestão, há 31.884 pessoas morando nas ruas da capital; de acordo com a UFMG, há 52 mil pessoas nas ruas. No título da matéria acima, fala-se em 60 mil atendimentos. Dessas pessoas atendidas, quantas deixaram as ruas através dos programas da prefeitura de São Paulo?
Muito se fala em atendimentos por parte da gestão municipal, dos milhares e milhares de atendimentos. Uma pessoa que mora no albergue X, que conversa com a assistente social desse mesmo albergue, que toma banho no núcleo de convivência Y, que almoça nesse mesmo núcleo, que ao andar pela rua é abordada pela equipe de assistência e que volta para pernoitar em outro albergue, essa pessoa foi atendida 6 vezes nesse espaço de tempo. Em 10 dias, essa pessoa receberá 60 atendimentos seguindo essa mesma rotina.
As organizações conveniadas giram em torno dos atendimentos, algumas poucas gerem muitos serviços e, consequentemente, a soma desses números é utilizada em propagandas e falas do secretário ou do prefeito. Muitas pessoas que moram nas ruas são desligadas dos albergues todos os dias, alguns por coisas do dia a dia. Os números de pessoas desligadas dos albergues em um dia não são divulgados, mas esses desligamentos fazem com que outras sejam acolhidas, assim o número de atendimentos vai girando. A política do liga e desliga faz parte da máquina de atendimentos da gestão.
Não se fala em políticas de saída das ruas, ou então em uma real autonomia para quem mora nas ruas da cidade. Essa população é olhada de forma infantil e incapaz, quando se afirma que não estão prontos para viverem em uma casa. Colocam-se inúmeras barreiras para atestar a incapacidade e a necessidade de tutela da população de rua, muitas vezes usando esses pontos como obstáculos para impossibilitar políticas reais de autonomia. Será que as pessoas que moram em casas e levam vidas ditas normais estão habilitadas a morar numa casa? Elas não possuem problemas?
Penso que a política da tutela se faz necessária para a prefeitura e o sistema, pois fornece os números tão divulgados. Ou seja, parece haver a necessidade de manter as pessoas nas ruas ou ligadas a albergues sem reais alternativas de saída e autonomia. A política dos atendimentos como um fim em si mesma gera lucro para muitas entidades. Há interesses na miséria do morador de rua, e a suposta bondade da gestão em visar os atendimentos e não as pessoas atendidas é o que faz a máquina girar.
Não há como disfarçar a tutela como autonomia. As palavras são contrárias uma à outra. Enquanto se infantilizar a população de rua e colocar barreiras à liberdade dessa população, enquanto as ONGs tiverem que tomar conta e policiar a vida do povo de rua, enquanto as políticas tiverem como foco a tutela e não a saída efetiva das ruas dessa população, não se pode falar em autonomia.
Diante de tudo isso, não existem políticas que gerem autonomia para a população de rua na cidade de São Paulo. Não sei se existem em outras cidades, pois a tutela e a manutenção do povo nas ruas como alvo de atendimentos e números elevados fazem parte da geração de lucro às custas do povo mais pobre. Faz-se necessário pensar em saídas das ruas com liberdade, dignidade e autonomia, e é necessário deixar de usar a narrativa da autonomia onde ela não existe. O discurso da autonomia, quando na verdade é tutela, na boca de secretários e prefeitos não passa de fake.