Com ampla definição, o conceito de Política Pública traz, como essência, uma resposta às expressões da questão social, sendo “ações desenvolvidas pelo Estado com o envolvimento de compromissos e ações que possibilitem o desenvolvimento cultural e social de um povo.” (BASTOS, 2017). Estas ações não somente concretizam os direitos sociais, como também garante a participação social e a cidadania na sociedade brasileira. A partir dos anos 90, diversas mudanças foram observadas no que se tange às áreas de atuação do Estado com maior aplicação de Políticas Públicas.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Nesse sentido, a estrutura governamental brasileira foi insulada burocraticamente, regulamentando (através da Constituição Federal de 1988) diversos eixos de atuação do Estado. Ao mesmo tempo, o contexto internacional dos anos 90 apresentou grande influência do ideário liberal na formulação de PP’s. Boa parte deste impacto deve-se ao Grupo Banco Mundial, que buscou persuadir diretamente as tomadas de decisões de países ditos “periféricos” em relação a distintas áreas de importância socioeconômica. As áreas da saúde e da educação, por exemplo, se consolidaram em torno de políticas públicas diretamente influenciadas pelo modus global. Desta forma, mesmo que o Estado brasileiro estivesse passando por um processo de redemocratização e de conhecimento de novas demandas da sociedade civil, a influência externa apontava para rumos específicos de governança e demandas do mercado.
Em relação ao setor da saúde, pode-se dizer que o Banco Mundial considerou – em todos os documentos analisados – o setor como bem de consumo, recomendando sua oferta pelo mercado devido ao potencial que este setor apresenta para a acumulação do capital. Através da ideia de intervenção do Estado a partir de “mínimo essenciais”, o Banco recomendou ao Brasil a organização de “um aparato público reduzido que desenvolvesse ações tradicionais de saúde pública, controlando epidemias e riscos tendentes a desestruturar o mercado”. (RIZZOTTO, 2016).
O projeto neoliberal de saúde desenhado pelo Banco possuía como base o Consenso de Washington (1989), que buscava delimitar medidas econômicas neoliberais para os países da América Latina. Na tentativa de angariar o Brasil e promover a máxima acumulação de capital, o Banco Mundial elaborou diversos documentos que analisavam o recém-criado Sistema Único de Saúde (SUS), bem como outras políticas públicas promulgadas pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o Banco defendeu a revisão da premissa constitucional, sugerindo reformas que favorecessem a maior participação do setor privado na oferta de serviços de saúde.
Para Rizzotto (2016), a própria criação do SUS em 1988 aumentou o interesse de interferência do Banco Mundial no setor de saúde brasileiro, “especialmente no que se refere às responsabilidades do Estado e à gestão pública. Interesse evidenciado pelo volume de publicações e de contratos de empréstimos estabelecidos” às diferentes esferas governamentais com objetivos claros. Para exercer a influência pretendida, o Banco não somente descreveu recomendações ao Estado brasileiro, mas também “atualizou o ideário liberal incorporando conceitos do campo progressista, […] e reduzindo ao campo do possível liberal projetos históricos do movimento sanitário”. (RIZZOTTO, 2016).
A avaliação do Banco Mundial sobre o SUS girou, portanto, em torno da gestão do Estado, do financiamento da saúde e da relação que o Sistema detinha com o mercado. O documento de 2007, intitulado “Governança no Sistema Único de Saúde (SUS) Brasileiro – fortalecendo a qualidade dos investimentos públicos e da gestão de recursos” teve como foco um mecanismo de gestão capaz de responsabilizar os atores com base em seus desempenhos. Neste, o Banco Mundial abordou a governança como um problema crucial no gerenciamento do SUS em todas as esferas do governo e defende a privatização do setor de saúde no Brasil, ressalvando o gerenciamento do relacionamento entre as várias partes envolvidas como, por exemplo, os diversos atores e esferas governamentais, as organizações civis e as empresas privadas. O Banco Mundial também apresentou novas recomendações, como a restrição do acesso e do direito à saúde; e a adoção de procedimento técnicos em “micro-gerência”, substituindo as decisões da macropolítica.
Em 2013, o Banco retomou a defesa da privatização do setor de saúde no Brasil no documento intitulado “20 anos de construção do sistema de saúde no Brasil: uma análise do Sistema Único de Saúde”. Neste registro, o Banco Mundial realizou um diagnóstico sobre a trajetória do SUS, bem como analisou temas considerados centrais através dos interesses de mercado. O documento é centrado no financiamento e na gestão do Sistema, inferindo sobre a eficiência da gestão e a relação público-privado do setor. Novamente, para o Banco Mundial, um sistema de saúde eficiente seria aquele que produz mais com um mesmo nível de gastos. Nesse sentido, o Banco apontou que não há como determinar a eficiência do Sistema Único de Saúde em nível macro e que, por isso, as avaliações da eficiência tenderam a focar em elos específicos da cadeia produtiva.
As recomendações do Banco Mundial no campo da saúde e da educação e os ajustes neoliberais presentes a partir desta mesma época direcionaram o Brasil a um estado de constantes reformas e tentativas de sucateamento e privatização de políticas existentes. Exemplo disso é o Plano “Brasil em Ação” do Governo Brasileiro, que selecionou 42 projetos educacionais para o período de 1995 à 1998, executados sob um novo modelo de gestão empresarial e contavam com a participação do setor privado.
Mais uma vez, fica explícito o posicionamento do Banco Mundial no que diz respeito à proteção econômica de um ideário neoliberal a partir da relação Estado-mercado. As recomendações no campo da educação se mostraram igualmente persuasivas: no que tange à Educação Básica, o BM sugeriu que o mínimo de reposição educacional (“minimum learning basic”) se transformasse no conteúdo principal a ser transmitido às pessoas de baixa escolaridade. O Banco também recomendou a abertura do Ensino Médio somente aos “julgados capazes, mediante a garantia de bolsas de estudo, uma vez que a sua oferta deva ser feita, prioritariamente, pelo setor privado.” (KRUPPA, 2001). Em relação ao Ensino Superior, o Banco recomendou sua gestão e financiamento exclusivamente através do setor privado.
Em todas as instâncias educacionais, o Banco Mundial designou recomendações de padronização curricular e de sistemas avaliativos capazes de definir metas e objetivos de ensino e aprendizagem (KRUPPA, 2001). Para além disso, “acredita-se que o financiamento da educação, antecipadamente refletido e previamente consultado a sociedade, seria a causa determinante para que se alcançasse uma educação de nível qualitativo.” (BASTOS, 2017). É a partir da década de 90 (e, após, em 2017 com as mudanças sociopolíticas no país) que uma ameaça neoliberal ronda essa necessidade de financiamento.
Mesmo com uma nova guinada abrindo caminhos no campo da educação durante os anos 2000, pode-se perceber que políticas neoliberais continuaram fortalecidas. Para Martins (2018), esse fortalecimento eclodiu na Emenda Constitucional 95/2016 (a chamada “PEC 241”) que alterou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) instituindo um novo regime fiscal de “limites individualizados para despesas primárias” nos campos da educação e da saúde. A EC 95/2016 comprimiu despesas discricionários e investimentos em políticas públicas a longo prazo.
Além de impossibilitar os investimentos em novas políticas públicas para as áreas, os impactos da emenda destilaram diversas políticas públicas já existentes no Brasil. Entre elas, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394,96), que “objetiva disciplinar e estruturar o funcionamento do sistema educacional brasileiro” (BASTOS, 2017), a execução do FUNDEB entre 2007/2020, “que orienta a aplicação dos recursos na área, com almejos no desenvolvimento social” (BASTOS, 2017), a instituição do Piso Salarial Nacional do Magistério e a elaboração do Plano Nacional de Educação – PNE, com vigência entre 2014/2024.
A EC 95/2016 trouxe outros impactos na educação em geral como, por exemplo, o aumento da disputa de interesses relacionados à educação que giram em torno do Estado e a indução de alterações e reformas nas constituições estaduais, com teto de despesas primárias. Ademais, tais reformas possuem uma cultura de austeridade fiscal que se emerge contra o essencial e se dispõem como “paliativos” no campo da educação brasileira. A ameaça neoliberal proposta pelas recomendações do Banco Mundial, pelo estrangulamento fiscal proposto pela atual EC 95/2016 e pelas reformas vigentes (como a “Reforma do Ensino Médio) desconsideram a educação como multiplicadora do PIB per capita e como fator considerável de aumento da produtividade.
As políticas públicas relacionadas à educação e à saúde no Brasil possuem uma relação intrínseca entre si no que tange ao direcionamento de ofertas de recursos do Estado e aos gerenciamentos das áreas. Como analisado, o período de redemocratização – em especial a década de 90 – possibilitou diversas mudanças na participação e no controle social de tais áreas, com avanços significativos nas políticas públicas de atendimento ao cidadão. Entretanto, pode-se inferir que as recomendações do Banco Mundial (no campo da saúde e da educação) e os ajustes neoliberais presentes a partir desta mesma época direcionaram o Brasil a um estado de constantes reformas e tentativas de sucateamento e privatização de políticas existentes.
Pode-se dizer, por fim, que os mecanismos de intervenção do Banco Mundial e da política externa neoliberal continuam presentes através de empréstimos e programas voltados às esferas estaduais e municipais, influenciando diretamente o funcionamento do aparelho Estatal e a privatização de políticas sociais no campo da educação e da saúde. Há de se pensar que as recentes reformas na Constituição Federal desconfiguram, cada vez mais, o próprio Sistema Único de Saúde e sistema educacional, partindo de uma lógica privatista. Por isso, é de grande urgência a organização da sociedade civil em defesa do SUS e das diferentes políticas sociais existentes no campo da educação (PNE, FUNDEB, etc.), além do encaminhamento de recursos para a permanência legal destas políticas públicas de universalização e democratização de acessos.