O que você espera quando assiste a um filme de terror? Uma sensação permanente de medo? Uma atmosfera criadora de tensão psicológica? Sustos frequentes a partir dos famosos jump scares? Manipulação das emoções em direção à angústia crescente? Histórias simples para seu entretenimento? Metáforas para questões sociais, filosóficas e histórias amplas? Existem alguns riscos se a resposta à pergunta inicial for única e/ou muito taxativa: fechar nossas perspectivas às várias possibilidades que o gênero apresenta e ser guiado por expectativas do que encontrará e resistir se algo diferente surgir. Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Afinal, qual de nós não se pegou projetando que tipo de filme assistiria apenas por conta do trailer, opiniões alheias, características dos realizadores, imaginário de uma época, números de bilheteria e tantos outros aspectos? Diante de tais cenários, nosso olhar pode estar mais ou menos estimulado a perceber e a compreender outros olhares, por mais que estes sejam inesperados, renovadores e distantes de nossas expectativas. No caso do terror, essa situação parece ser particularmente ainda mais intensa.
Isso porque o gênero já recebeu afirmativas bastante categóricas em diferentes contextos. Ele já foi ridicularizado como se fosse sempre cômico e tolo; menosprezado como algo menor que não proporciona qualidade de atuação ou de produção; simplificado como uma repetição pobre de tramas que forçam os sustos e o medo; e pretensamente reinventado e elitizado por projetos tidos como mais elevados. Por outro lado, ele é instigante quando obras e realizadores oferecem outra visão para o terror, que assinale como um gênero não se restringe a um único estilo, impacto ou abordagem.
A partir de 2017, uma proposta muito própria começou a tomar forma e a impactar muitos ao redor do mundo: o terror assinado por Jordan Peele. Sua trajetória incomum já foi responsável por parte dessa surpresa: iniciou sua carreira na comédia fazendo parte do elenco da série “Mad TV” entre 2003 e 2008, coproduzindo e co-estrelando a série “Key and Peele” ao lado de Keegan-Michael Key entre 2012 e 2015 e participando como coadjuvante de filmes como “Wanderlust” de 2012 e “Keanu” de 20161. Além da mudança no estilo dos seus trabalhos, Jordan Peele marcou seu nome no cinema contemporâneo ao propor um olhar bastante específico em relação ao terror com “Corra!” de 2017 e “Nós” de 2019.
E essa perspectiva original vem do encontro de diferenças, do contato entre elementos aparentemente insustentáveis. O crítico Juliano Gomes afirma que o diretor e roteirista trabalha na tênue linha entre produzir seus projetos dentro da máquina de poder de Hollywood e travar uma disputa contra a indústria para romper pontos de vista hegemônicos2. Para ele, tal coexistência produz novos resultados que fazem histórias e, por que não olhares, correrem em paralelo: o retrato contemporâneo da sobrevivência da escravidão na era neoliberal e a manifestação da subjetividade de Jordan Peele nos estúdios hollywoodianos.
Outra dualidade que pode perpassar o cinema de terror em geral e os trabalhos desse cineasta é abordada pela pesquisadora Robin R. Means Coleman em seu estudo sobre o terror3: filmes de terror com negros e filmes negros de terror. Na primeira definição da escritora, as obras têm personagens negros coadjuvantes ou periféricos sem tanta agência na narrativa, realizadores brancos que fizeram incursões tímidas sobre questões raciais e principalmente os riscos ou ações deliberadas de silenciamento, estereotipação e marginalização de profissionais negros e de suas histórias, culturas e vivências. Na segunda, já podemos inserir as produções de Jordan Peele como exemplos, por se tratarem de representações conduzidas para discutir temáticas sociais pautadas pelo racismo ou pela desigualdade e romper estereótipos nas imagens cinematográficas sobre personagens negros.
Em “Corra!”, a simples visita de um homem negro à casa dos pais da namorada branca pode não ser tão simples assim. Os comportamentos dos donos do local e de seus convidados (brancos) e dos trabalhadores (negros) escondem perigos muito mais aterrorizantes do que sugere a aparência convidativa e pacífica do ambiente suburbano. E esse jogo entre a suposta tranquilidade da área e as ameaças latentes que transbordam no clímax é feito dentro de fórmulas comerciais convencionadas pelos filmes blockbuster. O crítico, curador, pesquisador e professor Heitor Augusto amplia essa perspectiva ao argumentar que a embalagem do roteiro pode ser muito conhecida (estrutura de três atos, alívios cômicos e plot twists na história), porém a narrativa vai além das possibilidades de entretenimento comercial e retrata a deprimente persistência do racismo4.
No filme de 2017, podemos assimilar como o preconceito se manifesta de formas tanto explícitas quanto sutis. A abertura revela o medo de um personagem negro caminhar à noite por uma rua deserta de bairro de classe média, até ser seguido por um carro (não por coincidência) branco e, por fim, atacado; e mais à frente, uma batida policial no carro onde está o protagonista Chris e sua namorada Rose demonstra a discriminação do agente em pedir, sem nenhuma razão justificável, o documento apenas do homem negro. Em seguida, o roteiro apresenta sua originalidade ao mostrar o racismo pretensamente disfarçado de cordialidade e simpatia de uma elite branca, “progressista” e “dócil”.
Tais expressões veladas de racismo são um capítulo à parte, tamanha é a quantidade de exemplos de suas ocorrências. Elas podem ser materializadas pelos comentários feitos pelo pai de Rose enquanto apresenta a propriedade para Chris, que se pretendem agradáveis, porém são tentativas forçadas de agradar: o desejo condescendente de conhecer outras culturas, a citação à vitória do atleta negro Jesse Owens nas Olimpíadas de Berlim em frente a Hitler e a vontade de votar em Obama pela terceira vez se fosse possível. Além disso, podem tomar a forma de falas inconvenientes e indesejáveis dos convidados da família para uma festa: elogiar Tiger Woods sem nenhum contexto, perguntar sobre o tamanho do órgão sexual e da performance no sexo ou mencionar um biotipo favorável para lutas. Em todas as ocasiões, recorrem-se a estereótipos (a compleição física) ou à crença de que elogios a uma figura negro agradariam a população negra.
Assim como a intolerância racial recebe novas abordagens com Jordan Peele, o próprio terror também adquire outras combinações pelo seu olhar renovador. Podem haver interseções entre o gênero e a comédia sem prejuízo de nenhum deles, especialmente devido à presença do amigo de Chris: alívio cômico pelo modo como se coloca sendo capaz de identificar terroristas no aeroporto onde trabalha e como especula que os brancos estejam hipnotizando os negros para escravizá-los sexualmente – uma teoria ridicularizada por Chris constantemente quando os dois se falam por telefone e por policiais no terceiro ato, mas que não se mostra absurda após a revelação final. Outra menção ao humor, às avessas no caso, acontece na fala do dono de galeria Jim Hudson, que discorre sobre as surpresas desagradáveis que podem vir inesperadamente (“Às vezes, a vida faz piadas de mau gosto. Um dia você revela negativos na câmara escura. No dia seguinte, você acorda no escuro.”).
Entretanto, a questão do olhar não se manifesta apenas nas interferências externas do diretor na construção de seu entendimento sobre o terror. Ela também faz parte da diegese pelo fato de Chris ser um fotógrafo que depende, obviamente, de seu olhar artístico para produzir seus trabalhos com a captação do prosaico da vida diária. Esse ponto é analisado por Juliano Gomes ao apontar o registro do cotidiano como algo feito tanto pelo personagem (inseparável de sua câmera, inclusive, responsável por salvá-lo das situações mais perigosas) quanto pelo cineasta que encena fatos possíveis de serem vivenciados fora da sala de cinema pela população negra.
À medida que compreendemos a verdadeira dinâmica da casa de Rose, a guinada do filme para traços da ficção científica não abandona suas críticas sociais nem a dimensão chocante do terror. O interesse que os brancos possuem é a captura dos corpos negros para usufruírem de suas características físicas através de uma operação de transferência de consciência, na qual o branco assume violentamente a condução daquele ser e o negro se vê confinado a um “lugar profundo” como passageiro de seu próprio corpo. A operação em Chris ganha uma conotação particular porque o objeto de desejo são seus olhos (seu olhar artístico especial) pelo cego dono da galeria de arte, privado desse sentido humano básico por uma doença genética.
A violação do corpo negro feito pelos brancos leva o racismo a outro nível. Um nível percebido por Heitor Augusto como um paradoxo do olhar, contendo tanto a admiração por corpos e mentes negros que precisam ser tomados quanto um desdém por essas vidas tratadas como mercadorias manipuladas. Além disso, é algo que também pode remeter à frase do jesuíta italiano A.J. Antonil – “os escravos são os pés e as mãos dos senhores”5 – sobre o papel do escravo africano na colonização europeia na América. Não por coincidência a cena em que o pai de Rose “leiloa” Chris para os visitantes se assemelha a um mercado de venda de escravos.
O risco a que os negros estão submetidos em “Corra!” é anunciado desde o princípio, quando a câmera traça um paralelo entre Chris e um cervo atropelado na estrada: enquanto observa o corpo do animal, os enquadramentos fazem os olhares dos dois se cruzarem e deixarem o homem absorto com o pensamento distante; já na casa da família de Rose se senta em um sofá onde se pode avistar em cima a cabeça de um cervo empalhado – nas duas situações, o personagem parece ser uma “presa” cercada por futuros “caçadores”. Uma condição que não custa a mudar no clímax em que Chris mata o pai da namorada usando o bicho empalado, deixando a mensagem de que não seria uma “presa” muito menos seria indefesa.
Jordan Peele lança seu olhar sobre o cinema de terror, suas possibilidades de temáticas críticas e também sobre a representação dos personagens negros. O protagonismo de Daniel Kaluuya oferece alguém consciente e ativo do mundo em que vive, diferentemente de muitos papeis reservados a atores e atrizes negros que não passavam da passividade de ser o companheiro do protagonista branco (tendo a precaução necessária em uma abordagem policial e na apresentação aos pais da namorada por conta do racismo na sociedade); busca vínculos com outros indivíduos negros (especialmente um dos empregados da casa e o único convidado negro para a festa); e pertence à classe média ao invés de ocupar uma posição subalterna que desempenha função serviçal, como já se viu muito no cinema.
Com o passar do tempo, a narrativa também nega estereótipos identificados como recorrentes na história dos filmes de terror pela escritora Robin Coleman em seu livro: o negro assustado com olhos saltados sem conseguir se mexer aparece aqui somente como fruto da paralisia causada pela hipnose da mãe de Rose (os olhares expressivos de Daniel Kaluuya pode se relacionar à questão do olhar renovado trazido por Jordan Peele e também pode significar medo real em vez do humor estabelecido por outras produções que ridicularizam os negros); e o serviçal obediente assume o sentido de empregados com atitudes e expressões estranhamente vazias por terem seus corpos controlados pelas consciências de homens e mulheres brancos.
O filme ainda consegue capturar as emoções, certezas e expectativas do espectador ao direcionar o olhar para um lado e logo frustrar o que parecia certo. Se imaginarmos em uma estrada uma mulher branca ensanguentada após levar um tiro, um homem negro próximo à arma e uma viatura de polícia chegando ao local, qual é nossa primeira reação na cena? Acreditar que os policiais prenderão Chris sob a acusação de assassinato sem confiar na versão de que tudo não se passou de legítima defesa pela sobrevivência. Nossa suspeita inicial não é olhar escolhido para o desfecho por Jordan Peele, que prefere o espanto generalizado provocado pela saída do amigo de Chris da viatura e pelo alívio da segurança. Assim, somos colocados no ponto de vista do protagonista para imaginar o pior cenário e sentir a surpresa bem-vinda de um final menos violento do que poderia se tornar.
Anos depois, o olhar peculiar do artista reapareceu ganhando novas potencialidades dramáticas e de representação do terror e dos personagens. Em “Nós”, o protagonismo negro se intensifica agora com a família Wilson composta por Adelaide, Gabe, Umbrae e Jason, que viaja para um fim de semana de descanso na praia. A diversão aparente no ensolarado local muda radicalmente de figura quando um misterioso grupo invade à casa onde estão e os ameaça sem razão definida. O perigo fica ainda maior quando percebem que a a aparência dos invasores é igual a deles.
Sob a superfície imediata, a narrativa revela como a questão do olhar específica para o gênero se funde à da percepção da natureza humana complexa e multifacetada: o senso comum diz que os olhos são janela para alma, bem como também podem ser fontes de verdades, mentiras ou máscaras que apresentamos para nós mesmos e para a sociedade – há muitas cenas em que olhares insinuam algo enquanto escondem suas verdadeiras intenções (principalmente no caso de Adelaide) e a temática do duplo assinala como os indivíduos podem carregar versões distintas dentro de si, ocultas e contraditórias àquelas anunciadas publicamente. Além disso, é interessante perceber como os olhares diegéticos em muitos momentos também articulam emoções e linhas narrativas distintas (a própria narrativa se forma entre camadas visíveis e ocultas).
À medida que o roteiro se revela e podemos assimilar a dualidade entre os de cima (família que começamos a acompanhar e seus amigos) e os de baixo (chamados de “amarrados” que saem dos “esgotos” para a superfície em busca de uma vida melhor), variadas emoções perpassam cada evento e personagem. A expressão aterrorizada de Adelaide criança ao se deparar com seu duplo em uma casa de espelhos sobressai de maneira visceral no semblante; a fúria da versão “amarrada” adulta se destaca na fisionomia cruelmente divertida que transmite; e o sofrimento de Adelaide crescida diante do temor dos invasores ganha novas camadas de significados por expressões que indicam a apreensão de ter seu segredo revelado. Para as personagens mais velhas, a expressividade do olhar na atuação de Lupita Nyong’o é crucial para alternar entre diversas possibilidades emocionais de quem vem de uma área marginalizada e de outra pessoa que teme perder a posição que alcançou ao trocar de lugar com seu duplo anos atrás.
Além da experiência emocional advinda dos diferentes olhares da protagonista, tais expressões possibilitam encadear as transições cronológicas da narrativa conectando passado e presente. Por exemplo, no momento em que Adelaide olha para os brinquedos do filho na casa de verão, suas lembranças a levam de volta para a infância e a vemos quando criança na antessala da terapia enquanto os pais conversavam com a psicóloga. Essas e outras cenas se interligam da mesma maneira tendo como princípio o direcionamento do olhar que revive o passado e propõe significados a ele.
É também pelo olhar que verdades, mentiras e simulações são desveladas. A mesma Lupita Nyong’o estabelece uma fisionomia específica para a perversidade prazerosa da versão “amarrada” e para a discrição contida da Adelaide que escapou do mundo inferior e fingiu desde cedo fazer parte do mundo superior. A atriz mirim Madison Curry entrega igualmente uma expressão perversa para a versão que vai ao mundo de cima e desalentada para a outra confinada no mundo de baixo. Acima de tudo, a cena final resume os múltiplos sentidos deixados pelos olhares das personagens, criando máscaras e forjando novas identidades: Jason olha de forma penetrante para a mãe desconfiando de algo sobre ela (logo após o plot twist de que ela veio dos “esgotos” quando criança), Adelaide reage primeiro com um olhar confuso e temeroso até sutilmente passar para um sorriso levemente vitorioso (o menino apenas suspeita e nada pode devolvê-la às dificuldades daquele ambiente de onde fugiu), e o filho responde ocultando o rosto com sua máscara (uma representação simbólica da “máscara” usada pela mulher que esconde sua real identidade).
Trazendo do seu projeto anterior uma visão peculiar do terror, Jordan Peele demonstra como os gêneros não são entidades puras e fechadas em si mesmos. Se em “Corra!” havia flertes com a comédia e a ficção científica, em “Nós” a presença do humor é mais acentuada. Dentro da diegese, existem elementos que abraçam a comédia: Gabe se comporta como um alívio cômico por demonstrar intenso entusiasmo no planejamento das férias, fazer piadas para agradar a família e até se aproximar do humor físico nas cenas iniciais no barco; as discussões entre os irmãos de idades diferentes correspondem a situações engraçadas relativas a essa interação; sequências específicas usam o contraste entre imagens violentas de assassinato e as canções “Good vibrations” e “Fucka the police” que tocam no momento (envolvendo as mortes na família amiga dos protagonistas); e o absurdo da ocasião em que os Wilson decidem quem deve dirigir o carro através da contagem de quem matou mais duplos.
A possibilidade de o terror fazer comentários sobre a sociedade em que está inserido reaparece aqui, dessa vez levando às críticas sociais a um campo variado de possibilidades de interpretação dentro da Psicologia, História ou Sociologia. Uma das primeiras leituras pode girar em torno da questão dos duplos como reflexos simbólicos de personalidades opostas dentro de um mesmo ser. Outra alternativa seria refletir sobre os comentários políticos contidos na figura dos “amarrados” e em sua disposição como um cordão humano integrado, que separa o que está antes e depois deles, especialmente na cena final quando tais pessoas se espalham por montanhas – uma alusão potencial para as discussões quanto à construção de um muro entre EUA e México intensificadas por Donald Trump.
Em muitas ocasiões, as críticas podem ser entendidas dentro do espectro da luta de classes, ao colocarem os “amarrados” querendo viver no mundo de cima (tal qual uma ascensão social pretendida por grupos marginalizados). Eles passaram muito tempo à sombra daqueles que se encontram no alto, sem autonomia e presos como marionetes (na cena em que conhecemos o mundo debaixo, as personagens se movimentam e agem repetindo de maneira caricatural o que as personagens de cima fazem). A dinâmica dos conflitos de classe também se estabelece quando o duplo de Adelaide descreve os privilégios dos de cima e os sofrimentos dos de baixo tendo ela mesma como exemplo (dificuldades no parto, na alimentação, na formação de uma família…). Assim, as tesouras que carregam poderiam ganhar a simbologia do corte de amarras que os prendem a uma condição opressiva.
A representação social pelas desigualdades de classe ainda pode oferecer chaves de leitura e significação para a propaganda de TV na abertura do filme, quando pessoas são mostradas de mãos dadas na luta contra a fome. Esse registro televisivo, aparentemente solto no início, pode se conectar à mise-en-scène dos “amarrados” no mundo superior, perfilados na mesma posição também passando a mensagem de que lutam contra a própria fome (e outros problemas) que possuem. Em mais cenas adiante, a condição econômica dos de debaixo como uma classe social subalternizada é sutilmente apresentada: por exemplo, a resposta “Nós somos americanos” da versão “amarrada” de Adelaide à pergunta “Quem são vocês?” como alusão ao fato de pertencerem àquela nação, mas serem diminuídos e segregados; e o corte do olhar assustado da menina Adelaide para o olhar aparentemente infeliz de um coelho preso, referência possível aos “amarrados” porque se alimentam desses animais, à grande quantidade de pessoas naquela condição ou a algum outro significado percebido pelo espectador (é curioso como tanto em “Corra!” quanto em “Nós” há paralelos entre os personagens e o animais).
Enquanto a narrativa se desenrola, o olhar de Jordan Peele para os negros no cinema de terror ganha ainda mais relevo. Isso porque ele consolida a perspectiva do maior protagonismo negro, por exemplo negando os estereótipos de que os negros são os primeiros a morrer ou se sacrificam pelos brancos (inclusive na cena em que os Wilson matam os duplos da família branca não se sugere nada sequer parecido com um sacrifício); e declarando em entrevista que pretende usar somente atores negros nos papeis principais de seus filmes (um compromisso significativo e bastante expressivo de se assumir). Seguindo por essa linha, os personagens negros tem agência e enfrentam as ameaças de forma coerente e inteligente, dispensando qualquer eventual atitude questionável que nós percebemos no gênero (o famoso “vamos andar pelo escuro na direção de um som estranho que pode ser perigoso”, por exemplo).
A agência se torna ainda mais emblemática por envolver a protagonista vivida por Lupita Nyongo’o. Ela toma a dianteira na luta contra seus antagonistas, apresenta uma verdadeira camada dramática com um conflito que se revela aos poucos e surpreendentemente e tem seu comportamento ilustrado pela seguinte frase do marido “Ela sabe o que fazer”. Em relação a isso, também é curioso perceber como Gabe Wilson simplesmente aceita que a resolução dos conflitos depende de sua esposa e que ele não teria condições de fazer o mesmo que ela (no clímax, ele se senta na ambulância junto da filha, enquanto Adelaide vai até o mundo inferior resgatar o filho e enfrentar sua outra versão). Assim, Jordan Peele reafirma que, usando as definições de Robin Coleman em seu livro, está fazendo filmes negros de terror e tratando de relações raciais, negritude e outras condições sociais da contemporaneidade.
“Corra!” e “Nós” podem ajudar a rejuvenescer o gênero atualmente por diferentes razões. Nenhuma delas girando em torno das supostas implicações que vem junto com o uso do termo “pós-terror”, pois eles não precisariam se gourmetizar com posturas elitistas nem sugerir uma reinvenção que, na realidade, é o diálogo com práticas já feitas anteriormente. Esses dois projetos de Jordan Peele nos fazem lembrar que o terror já há bastante tempo utiliza metáforas sociais, políticas e filosóficas para criar suas histórias e impactar o espectador; bebe de fontes diversas quanto a estilos e abordagens e rompe com estereótipos e representações identitárias simplificadoras. A experiência não precisa ser, necessária e integralmente, prazerosa, divertida e preenchida com sentimentos positivos para se colocar como poderosa e complexa.
Terror é enfrentamento de questões sociais. Terror é diálogo com outros gêneros. Terror é quebra de preconceitos e discursos hegemônicos. Terror é um conjunto de olhares. De Chris. De Adelaide. De Jordan Peele.