De 2015 para cá, o nome de Robert Eggers vem circulando consideravelmente nos meios cinematográficos. Olhando em retrospecto, poderíamos mencionar os debates em torno das expressões “pós-terror” e “horror elevado” que foram associados ao realizador. Porém, esse texto não se debruça sobre a questão, até porque as duas nomenclaturas pressupõem uma elitização do gênero e o desconhecimento de que o terror, historicamente, já abordou temas e discussões dramáticas, psicológicas, políticas e sociais. Além disso, há aspectos muito mais ricos para se refletir e trabalhar a partir da filmografia do diretor, considerando-se que seus três longas-metragens dialogam entre si e demonstram a autoralidade do artista.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Em 2015, lançava “A Bruxa“. Quatro anos depois, era a vez de “O Farol“. As duas obras apresentavam mais em comum do que o gênero terror. Ambas traduziam narrativa, visual e dramaticamente as visões de seu realizador sobre a feminilidade e a masculinidade. A primeira utilizava a dúvida quanto à existência de uma bruxa em uma floresta ao redor da casa de uma família extremamente religiosa como ponto de partida para tratar a repressão social à sexualidade feminina, culminando com um catártico processo de libertação. A segunda explorava a tempestuosa relação entre dois faroleiros em um isolado farol como premissa para desenvolver a ideia de sexualidade masculina na chave da dominação e do poder, conduzindo a uma crescente tensão sexual baseada na violência. Mesmo “O Homem do Norte” não sendo, propriamente, um terror, o terceiro filme de Robert Eggers se aproxima muito dos antecessores.
Na Islândia do século XIX d.C,, o jovem princípe Amleth (Oscar Novak) está prestes a atingir a maioridade e, assim, suceder seu pai, o rei Aurvandil (Ethan Hawke), no trono. A sucessão natural é frustrada quando o tio Fjölnir (Claes Bang) trai o próprio irmão, o assassina para usurpar o poder e sequestra a cunhada, a rainha Gudrún (Nicole Kidman) para torná-la sua esposa. Presenciando o assassinato, o princípe jura vingança pela morte do pai, prometendo a si mesmo que voltaria para salvar a mãe e matar o tio. Anos depois, Amleth (Alexander Skarsgård) cresceu e, alertado por uma vidente, percebe que chegou a hora de cumprir sua promessa de sangue. Então, ele parte em uma odisseia em busca de Fjölnir.
Os primeiros minutos apresentam a dinâmica do reino e as interações iniciais dos personagens. O rei Aurvandil retorna ao seu território após participar de batalhas em terras distantes, sendo recepcionado pela família e pela corte. O conselheiro místico Heimir (Willem Defoe) atua de forma irônica e provocativa em frente aos governantes; Gudrún recebe o marido insatisfeita por conta da distância emocional entre os dois, que não dormem juntos há algum tempo; Fjölnir parece respeitoso com relação ao irmão, mas não esconde sua agressividade ao assistir à performance de Heimir; e Amleth demonstra tanto reverência pelo pai quanto preocupação com seu destino como sucessor do trono. Embora a sobriedade e o formalismo tomem conta da situação, é curioso observar como o primeiro encontro entre Aurvandil e Amleth expõe um dos poucos momentos de afeto na narrativa: o rei trata o princípe com a seriedade que os cargos políticos exigiam, independentemente da idade, mas o pai trata o filho com carinho abraçando-o.
Tal cenário não é completamente inédito, pois remete imediatamente à história shakespeariana de “Hamlet“, uma criação mais familiar para o mundo ocidental, que gira em torno de disputas pelo poder aristocrático e intrigas familiares e militares. Entretanto, Robert Eggers não se inspira somente no clássico livro de William Shakespeare, já que sua fonte essencial é a mitologia nórdica, especialmente os contos orais que relatavam a trajetória do princípe Amleth séculos atrás e foram sistematizados por escrito por Saxo Grammaticus na publicação intitulada “Gesta Danorum“1. As influências de lendas e relatos mitológicos não custam a aparecer, tanto que Aurvandil e Amleth partem logo para uma gruta para passar por um ritual místico comandado por Heimi, algo como um rito de passagem capaz de amadurecer o princípe e prepará-lo para a vida de adulta e para o poder. O momento é transcendental e assustador, devido ao uso de substâncias alucinógenas, à decupagem em torno da valorização do rosto de Willem Defoe com closes muito expressivos e ao transe de pai e filho mergulhados em um universo específico em que se comportam como cachorros. Essa cena já é interessante para sugerir o que o restante da narrativa vai desenvolver: os elementos constitutivos de uma masculinidade dominadora que se impõe pela força e dispensa sentimentos.
Uma essência animal e uma violência interior fariam parte dessa identidade masculina imposta socialmente. No ritual descrito acima, a animalização está presente sob a forma de uma entrega aos comportamentos primitivos da humanidade (a performance como um cão), assim como o choque “violento” se manifesta na caracterização de Heimi e na composição visual dos planos feita pelo diretor (os planos fechados em um Willem Defoe caracterizado de forma tão peculiar e a escuridão do ambiente fechado entrecortada pela luz proveniente do fogo). Os dois elementos reaparecem momentos depois quando Fjölnir executa sua traição, assassinando o irmão, e Amleth jura vingança durante a fuga. Aurvandil é chamado de rei-corvo, algo que pode ser uma associação ao personagem quando o animal aparecer em outras cenas ou um símbolo da morte pertencente a sua jornada. Já o assassinato em si é a manifestação literal da violência, considerando o próprio ato e as implicações de matar um familiar enquanto uma criança assiste. A narrativa parece sugerir que os homens liberam frequentemente a selvageria e a violência de seus corpos e identidades.
Passados alguns anos, Amleth chegou à vida adulta e passou a viver distante do reino de sua família. No entanto, o desejo de vingança parecia suspenso para o indivíduo que se uniu ao aos Berserkir, um grupo de cruéis guerreiros nórdicos que cultuava Odin. O protagonista e os Berserkir surgem, após a passagem de tempo da narrativa, atacando uma vila de modo brutal fazendo vítimas entre os homens, mulheres e crianças do local. Antes do ataque, a preparação dos guerreiros denota mais uma vez o extravasamento de uma faceta selvagem e de atitudes extremamente violentas. Eles gritam e se batem como soldados enfurecidos prestes a liberar o ódio e a brutalidade contra seus alvos, estando todos eles vestidos com a pele de lobos para representar o perigo desse animal e de si mesmos. Além disso, a ferocidade do ataque é ressaltada não apenas pelos golpes desferidos pelos guerreiros e pelos resultados de suas ações (já suficientemente impactantes), mas também pela decupagem escolhida por Robert Eggers em contraste absoluto com os fatos em cena. O cineasta contrapõe a violência dos personagens com a sutileza da composição dos planos e da movimentação da câmera, estabelecidas com o registro direto da brutalidade, a fluidez de uma montagem metódica com poucos cortes e ambientação geral do espaço.
Durante sua presença naquela vila, uma vidente alerta Amleth de que o momento de sua vingança havia chegado e não poderia mais ser adiada. Em muitos sentidos, essa cena simboliza o discurso feito pelo cineasta sobre a masculinidade e suas possibilidades de libertação diante das pressões, repressões e tabus sociais. Isso porque novamente um personagem que trabalha com o místico e o sobrenatural anuncia a influência de um destino violento para o protagonista. Então, ele viaja em busca do paradeiro do tio e da mãe, descobrindo que Fjölnir perdeu o reino que havia usurpado e precisou viver com sua família e corte em um território mais modesto próximo às montanhas da Escandinávia. Escondendo sua verdadeira identidade para se aproximar do antagonista, Amleth encontra outra realidade: seu primo Thórir (Gustav Lindh) cresceu e se tornou tão odioso quanto seu próprio pai em função de sua postura de superioridade; o meio irmão Gunnar (Elliott Rose) nasceu do relacionamento entre Fjölnir e Gudrún e age como um pequeno rei já dono de uma autoridade precoce; e Olga (Anya Taylor-Joy) se revela um potencial interesse amoroso para o personagem principal sem abandonar sua força como uma trabalhadora que não se sujeita a qualquer intimidação nem suas habilidades místicas.
A volta de Amleth para cumprir sua promessa evidencia outros elementos que parecem perseguir a masculinidade como se não houvesse escapatória. A recorrência dos paralelos com animais e da violência ecoa por tempos imemoriais, ultrapassando a realidade específica daqueles personagens. Todos eles parecem presos a um conjunto de relações e conflitos que contêm temas atemporais, como a busca pelo poder, o desejo de vingança, a presença da violência na sociedade e diversas atitudes movidas por sentimentos de amor e ódio. Tais elementos não são inéditos nas artes e nas culturas de variados povos ao longo da história, já tendo aparecido nas peças teatrais nas pólis gregas da Antiguidade e na literatura clássica de William Shakespeare no século XIX. Aparentemente, “O Homem do Norte” poderia apenas emular histórias já elaboradas anteriormente, porém Robert Eggers vai além da cópia ou do resgate do passado porque está interessado em como essas tramas podem dizer muito sobre a masculinidade e serem criadas numa lógica fantástica bastante expressiva.
Se os temas atemporais permitem à narrativa extrapolar eventuais acusações de ser uma história clichê sem nada a acrescentar e dialogar com vários públicos, os aspectos místicos fazem a trajetória de Amleth escapar dos limites de uma realidade puramente literal. O misticismo está presente em figuras como videntes, feiticeiros e profetas, que associam o ordinário ao sobrenatural ao conduzir rituais como aquele em que o jovem protagonista se compromete a proteger o pai e a se preparar para assumir o reino no futuro, e outro em que um feiticeiro é invocado em um esqueleto para prever os desdobramentos da vida de Amleth. Os trabalhos dessas figuras possibilitam a criação de profecias e destinos que aprisionam ao invés de oferecer diferentes caminhos aos homens, dificultando a saída de um cenário composto pela inevitabilidade da violência e do primitivo.
O aspecto sobrenatural inserido sobre o arco de vingança do protagonista poderia ser apenas indefinido, mas não contemplaria as possibilidades de uma trama situada na Escandinávia e com vikings. A narrativa abraça a mitologia nórdica em seu roteiro, concepção visual e subtextos dramáticos, incorporando seres e dimensões míticos ao universo palpável da luta por vingança. Ampliando as menções aos lobos, a citação ao lobo monstruoso Fenrir confere uma significado ainda mais brutal a Amleth. Já a inclusão de Odin, principal deus nórdico, e das Valquírias, mensageiras que escolhiam os guerreiros mais heroicos para levá-los ao “salão dos mortos” de Valhalla, anunciam a tragédia iminente que reveste o percurso do protagonista. Odin pode até ser um recurso imaginativo que surge ocasionalmente como referência ao futuro de Amleth, mas a Valquíria aparece simbolizada por Olga, que tem um papel metafórico nessa jornada.
Há ainda mais alguns elementos relativos às crenças espirituais ou místicas dos povos nórdicos que são inseridos no decorrer da narrativa. Quando Amleth se encontra nos domínios de Fjölnir, tem início seu plano de vingança calmamente de maneira a tornar a vida do tio um pesadelo: mata soldados e outros membros da “corte”, cria um clima de paranoia quanto ao responsável pelos assassinatos e afeta a própria noção de realidade de seus inimigos. Em meio à execução da vingança, somos levados a observar a crença em divindades relacionadas a aspectos da natureza e a hostilidade com povos monoteístas e cristãos das proximidades – inclusive, a primeira suspeita com relação ao assassino recai sobre os cristãos, em um evidente exemplo de intolerância religiosa.
O politeísmo desses personagens pode ser expresso particularmente pela importância simbólica dos animais. Eles cumprem múltiplas funções e sentidos, complementares e/ou contraditórios. São, especialmente, três os que mais aparecem: corvo, urso e lobo. Podem ser símbolos de uma faceta selvagem que o homem tenta reprimir ou representações do misticismo, mas também podem integrar o arco de Amleth. O corvo tanto representa a morte que está em sua jornada de vingança quanto o próprio pai, inclusive quando o protagonista parece sucumbir, a ave ajuda na sua salvação. Já o urso e o lobo são mencionados como arquétipos do personagem, tendo a força do primeiro e a periculosidade do segundo.
Visualmente, Robert Eggers também estabelece um padrão estético que perpassa muitos momentos em que o mítico ganha destaque. Por um lado, as construções visuais podem ser evidentemente alegóricas e fantásticas, como as representações de Odin atravessando os céus para atingir Valhalla e de uma Valquíria conduzindo guerreiros bravos ao seu desfecho glorioso. Por outro lado, algumas construções visuais revelam as opções artísticas do diretor, interessadas em revestir os personagens de uma áurea tão grandiosa quanto a mitologia que acompanha uma história de vingança e poder. Nesse sentido, vários quadros são concebidos de forma expressiva com planos enfocando um personagem centralizado e encoberto por um ambiente quase totalmente escuro, exceto por um pequena fonte de luz natural em algum espaço do quadro.
Todos esses elementos compõem, em alguma medida, o desejo de vingança de Amleth. Desde a preparação e execução meticulosa do plano até a chegada do confronto final com Fjölnir, Robert Eggers não se esquiva de absorver em sua narrativa a faceta violenta de seu protagonista. Se o personagem se impõe somente pela brutalidade dos confrontos corporais e do uso de armas, a câmera do cineasta busca os resultados da violência sem tantos rodeios ou restrições. A encenação da violência é direta e, por vezes, gráfica como se esta fosse a culminância inevitável de uma vida que não conheceu outros tipos de ação. No momento em que o clímax se aproxima, Amleth se vê novamente abordado por um gesto de afeto, dessa vez por Olga, uma futura esposa que poderia oferecer a ele uma perspectiva de futuro mais pacífica. Do mesmo modo que, no primeiro ato, o carinho do pai é ofuscado pela avalanche de acontecimentos violentos, a possibilidade de uma vida harmoniosa com Olga é quebrada por um destino inescapável que coloca a vingança como inevitável tal qual uma profecia mais forte do que o livre arbítrio. Então, a mulher, dona de habilidades místicas, torna-se uma Valquíria alegórica que prepara o terreno para outro desfecho para Amleth.
Por consequência, o protagonista não consegue se desviar de uma essência que o persegue e o invade. Uma essência que, na visão do cineasta, envolve os aspectos mais problemáticos que certa concepção de masculinidade pode ter: a entrega para comportamentos violentos, a liberação de uma natureza primitiva e selvagem, a submissão a algo maior do que sua própria existência (uma religião, uma mitologia, alguns rituais místicos ou a potência da natureza) e uma relação ambígua com o próprio corpo (instrumento de exercício de sua força, objeto de devoção pessoal ou fonte sexualidade mal resolvida). Afinal, os confrontos de Amleth com todos os seus inimigos podem conter reviravoltas inesperadas, sequências de ação intensas e altas doses de violência, mas podem também dar vazão a algo mais. Como exemplo, está a luta entre Amleth e Fjölnir em torno de um vulcão em erupção, ambos nus, em uma demonstração de força bruta ancestral ou uma irrupção de componentes sexuais reprimidos individual ou socialmente.
Nos últimos minutos, a obsessão pela vingança não pode desencadear um final reconfortante para Amleth. Não há como encontrar satisfação ou uma resolução positiva quando um indivíduo é alimentado pela violência e pela brutalidade. Nesse sentido, o terceiro longa-metragem de Robert Eggers oferece um contraponto poderoso para seu primeiro longa e um complemento coerente para seu trabalho anterior, todos eles tendo em comum alguma veia mitológica. Em “A Bruxa“, a mitologia cristã é mobilizada para tratar da repressão do prazer feminino e da conquista da libertação. Em “O Farol“, a mitologia grega é utilizada para abordar a sexualidade masculina a partir da chave da dominação, do poder e da aparência de uma fortaleza inabalável contra a fraqueza dos sentimentos. E em “O Homem do Norte“, a libertação masculina é frustrada pelos males de uma masculinidade fadada à perdição.