São muitos os serviços de streaming disponíveis hoje em dia no Brasil. O cenário já foi outro alguns anos atrás, quando havia basicamente a Netflix e nada mais. Desde então, chegaram a Globoplay, a Disney+, a HBO MAX, a Star+ e outros serviços mais ou menos populares. Cada streaming possui obras referenciais que podem atender a diferentes perfis e seguir estilos específicos, como filmes e séries de super-heróis, tramas para adolescentes, produções com o selo da empresa Globo, blockbusters estadunidenses e trabalhos internacionais de alcance global. Entretanto, cada carro-chefe pode ofuscar obras com grande valor artístico que poderiam ser mais conhecidas, discutidas e apreciadas. É bem verdade que os catálogos podem ser extensos e movidos por algoritmos que privilegiam determinados títulos em detrimento de outros. O que fazer para não cair nessa armadilha? Fazer um esforço consciente para mergulhar nos catálogos, investigar as possibilidades e descobrir produções menos conhecidas e comentadas. Assim, é possível, por exemplo, encontrar “Noite de Reis” na Globoplay, um filme que lembra a clássica história de Sherazade. Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Na antiga Pérsia, o sultão Shariar descobriu a traição de sua esposa e reagiu violentamente. Decidiu que jamais seria traído novamente, matou a então esposa e resolveu matar todas as outras mulheres com quem se relacionasse. Então, ele passou a se casar a cada dia com uma mulher e ordenar seu assassinato após a noite de núpcias. Após diversas vítimas, Sherazade convence o pai a deixá-la casar com o sultão ao prometer colocar um ponto final nessa sequência de assassinatos. No quarto com Shariar, ela começa a contar uma de suas maravilhosas histórias, mas não consegue terminá-la antes do amanhecer. Querendo saber o desfecho da história, o sultão poupa a vida de Sherazade para a noite seguinte. Chegada a hora, a estratégia é repetida. Durante mil e uma noites, a mulher seguiu o mesmo plano até ter feito Shariar se apaixonar por ela. Esta é a origem do livro “As Mil e Uma Noites“, que reúne narrativas famosas, como a de Ali Babá e os quarenta ladrões e as aventuras de Aladim, e representa a cultura árabe1.
Em “Noite de Reis“, a semelhança com Sherazade cabe ao jovem protagonista (Bakary Koné) levado para “La Maca”, prisão da Costa do Marfim no meio da floresta e comandada pelos prisioneiros. Na primeira noite, uma lua vermelha aparece no céu e o chefe do local Barba Negra (Steve Tientcheu) o escolhe para ser o novo Roman e contar uma história para os outros presos. A única informação crucial que não foi passada é que, terminada a história, seu contador deve ser sacrificado. A premissa que orienta a produção marfinense parte do diretor e roteirista Philippe Lacôte – com a colaboração de Delphine Jaquet no roteiro – e utiliza a personagem feminina da cultura árabe para abordar o poder da narração de histórias em muitos sentidos. Esta pode ser uma potência que atravessa a trajetória histórica de um povo, as manifestações culturais das sociedades, a conjuntura contemporânea de um continente e a capacidade criativa da ficção.
Como os elementos constitutivos da história são heterogêneos, a narrativa deixa logo explícito que a prisão é um mundo com regras e leis próprias. Na abertura, alguns intertítulos contextualizam as regras (como, por exemplo, a regra que diz que o Dangôro é o chefe que manda nos presos e, quando fica doente, deve tirar sua vida). Posteriormente, a forma mais comum de apresentar um universo ficcional específico é utilizada: inserir um personagem novo que tentará aprender como funciona o ambiente em que está, ao mesmo tempo que o próprio espectador faz o mesmo a partir do olhar dele. Após entrar no presídio e ser recebido pelos guardas, o protagonista começa a observar a dinâmica do local e o público reconhece aspectos característicos daquele confinamento. Os prisioneiros precisam formar redes de proteção para se defender de possíveis inimigos, dividindo-se em gangues; a rivalidade se desenvolve entre grupos opostos na disputa pelo poder no presídio, liderados por Barba Negra e Lass; muitos deles se envolvem em atividades como jogo de cartas e troca de cigarros e outros recursos; e o preconceito pode ser visto na forma como Sexy – uma personagem trans – é tratada pelos demais.
Apesar dessas situações já indicarem um código moral de conduta peculiar, Philippe Lacôte também constrói uma realidade fantástica com uma mitologia fabulesca que dialoga com a história e a cultura da Costa do Marfim. Inicialmente, os presos interagem de modo realista jogando cartas, intimidando uns aos outros ou preenchendo o tempo com outras atividades. Entretanto, com o passar do tempo, o realismo é deixado de lado em favor de acontecimentos e ideias próprios de uma fábula repleta de teatralidade, musicalidade e doses de fantasia. Os prisioneiros começam a dançar e a cantar repentinamente, os guardas se mostram incapazes de conter os problemas da prisão (como se fossem meros figurantes a observar de camarote o que acontece ao redor), as questões em torno da liderança do Dangôro e da passagem de poder são aceitas pelos prisioneiros como se fosse algo já muito antigo e a relação entre a chegada de uma lua vermelha no céu e a contação de história por alguém com a condição de Roman não é explicada. Consequentemente, pode-se perceber que o universo fantástico é desenvolvido sem a necessidade de explicar didaticamente tudo ao público, já que as peças são apresentadas e reunidas aos poucos para oferecer possibilidades de compreensão ou permitir conjecturas a respeito de seus significados e origens.
Embora não entenda tão bem o porquê de Roman ter sido escolhido e o destino que o esperava ao final daquela noite, nem o que poderia contar, o jovem não vê outra alternativa a não ser escolher uma história para narrar. De início, ele decide contar sobre sua própria vida, passando pela infância e pela relação com a mãe, mas os prisioneiros não demonstram satisfação com o que ouvem. Desta forma, é preciso mudar. O tema passa a ser a jornada de Zama Rei, o líder de um grupo de criminosos que emergiu após a prisão do então presidente Laurent Gbagbo. Ao passar por diferentes fases da vida do personagem, Roman integra diferentes elementos culturais do continente africano em geral e da Costa do Marfim em particular. Tudo começa quando ele aceita o papel a que foi designado, fazendo referência à vontade de Alá – o Deus monoteísta para a religião islâmica – algo que demonstra que o islamismo se expandiu pelo mundo e chegou a países africanos. Ao longo do seu relato, o jovem comenta que sua mãe seria uma griot, ou seja, uma pessoa respeitada por sua comunidade por contar histórias a diferentes gerações e, assim, manter vivas a memória e a identidade de seu povo e transmitir valores e saberes. A figura do griot, exercida pelo Roman na prisão, relaciona-se com a importância da oralidade como construção cultural e prática tradicional para a elaboração de sentidos em sociedades sem o uso da escrita.
O poder das histórias é efetivado também porque o ouvinte se envolve com o que é contado, reage emocionalmente e se mostra impactado pela força das palavras. Philippe Lacôte constrói uma mise-en-scène expressiva que explora o cenário e trabalha a interação entre os personagens criativamente, enriquecendo o ritmo e a encenação do relato de Roman. Por vezes, os prisioneiros estão de pé em uma postura de confrontação com o protagonista, desafiando-o a contar algo interessante. Em outros instantes, eles circulam pelo espaço sem posições definidas e reagem aos fatos da história, podendo interpretá-los e dramatizá-los através de trechos em que cantam ou simulam movimentos pelo próprio corpo (por exemplo quando se fala de um escorpião, um deles se contorce para parecer o animal, e quando se menciona uma briga, um grupo finge uma luta). Ainda há outros momentos em que eles estão tão concentrados em ouvir que se sentam em círculo no chão e mal se movem, tão atentos estão para não perder sequer uma palavra. Qualquer que seja a postura, a audiência mostra como dar grande importância às histórias, entendendo-as como uma parte essencial de suas vidas e de suas emoções, e como os relatos sempre dependem do seu receptor para tornar seus efeitos e sentidos mais significativos.
No próprio conteúdo da história, é possível notar outros aspectos criativos que alcançam um realismo mágico digno de combinar fantasia e registro histórico. A trajetória de Zama Rei contada por Roman consegue evocar a existência dos grandes reinos africanos existentes no continente antes da chegada dos europeus, as crenças politeístas variáveis em cada território africano e as visões dos reis e rainhas como figuras poderosas associadas às divindades ancestrais e à natureza. Nesse recorte, a História reconstruída em fontes e documentos antigos aparece sob a forma de relatos de acontecimentos verificáveis, como as disputas territoriais e políticas entre grandes reinos, as cerimônias religiosas em homenagem aos deuses e as indumentárias/objetos/adereços típicos. No mesmo mundo retratado, aspectos imaginativos e lúdicos podem coexistir com aqueles atestados historicamente, como os confrontos entre dois líderes que mobilizam poderes sobre-humanos e se assemelham às lutas de figuras heróicas com habilidades especiais – a representação desse conflito tem o mérito de suspender a abordagem realista até então utilizada para imprimir um tom fantasioso com efeitos visuais que transformam os personagens em animais ou objetos.
Da mesma forma que o passado histórico e a imaginação são mobilizados para possibilitar a narração de uma história, a narrativa de “Noite de Reis” também mostra que outras obras artísticas podem compor a trama. Em tempos pós-modernos em que as reapropriações e ressignificações no campo artístico permitem diversos usos linguísticos, cresce o número de produções conscientes do que são e do lugar que ocupam. Nesse ponto, o trabalho de Philippe Lacôte referencia “Cidade de Deus” em dois momentos, estabelecendo um diálogo com o filme brasileiro que pode parecer uma homenagem mais direta, porém carrega outras possibilidades em uma escala mais densa. Apesar de haver a sequência de perseguição a uma galinha no presídio que remete à abertura da obra de Fernando Meirelles e Kátia Lund, a menção explícita a ela feita por Roman mais à frente durante a narração da infância de Zama Rei expõe outras apropriações. A repercussão internacional de “Cidade de Deus” e de Zé Pequeno faz com que o diretor marfinense invoque este filme para dialogar com ele por contraste, seja na abordagem fantástica de um ambiente periférico, seja na construção visual opressiva de um ambiente drenado de cores fortes.
Quando o conteúdo da história contada por Roman avança ainda mais, a dimensão ficcional do relato se amplia em outra direção. Além de fazer referência consciente ao filme brasileiro e se aproximar do público a partir do conhecimento da história do cinema, o drama marfinense também evidencia o caráter subjetivo de qualquer narrativa, que é construída a partir das escolhas de seu realizador. Se Philipe Lacôte demonstra claramente que sua produção não é um retrato neutro e realista do mundo através de uma encenação mais fantasiosa, a narração do protagonista indica que ele próprio é alimentado pelo desejo de contar a história ao mesmo tempo que confere a ela liberdades criativas e invenções. Desse modo, Roman responde à pergunta sobre o porquê de ter decidido contar a trajetória de Zama Rei com a frase “Não escolhi essa história. Ela veio até mim”. Além disso, ele mistura passado e presente ao colocar reinos antigos da África durante a infância de Zama Rei, algo que é notado com descontentamento por um dos presos. Porém, todas as histórias não podem ser assim, sob alguma medida? Uma reconstrução de eventos passados que combina memória, subjetividade e conhecimento e tem suas lacunas completadas com criatividade, imaginação e limites à fidelidade.
É bem verdade que algumas invenções de Roman possuem um sentido pragmático. Ao ouvir de Silêncio (Denis Lavant) que todo contador de história é morto ao terminar de contar sua história (praticamente um ato sacrificial a alguma tradição estabelecida em “La Maca”), ele precisa prolongar ainda mais seu relato. Nesse sentido, Roman se torna uma espécie de Sherazade ao depender do poder das histórias para continuar vivendo. Por isso, a estratégia é a mesma: valorizar a curiosidade dos ouvintes através de recursos narrativos que geram mistério, reviravoltas, quebra de expectativas e mudanças de pontos de vista. Assim, Roman circunda, percorre, atravessa, retorna e segue a trajetória de Zama Rei por diferentes direções e perspectivas, dando a entender que os finais são apenas conclusões temporárias de uma história maior que se expande continuamente. Por isso, o desdobramento é o mesmo: tanto na antiga Pérsia quanto na Costa do Marfim contemporânea, traços da cultura local são anunciados pela obra literária e cinematográfica.
Conhecer o passado e a ancestralidade da África não é a única possibilidade que o filme proporciona. Philippe Lacôte também faz comentários sobre os problemas sociais e políticos contemporâneos no continente desde o fim da dominação imperialista europeia, após a Segunda Guerra Mundial. O aspecto que mais sobressai nessa representação é a violência resultante de guerras civis travadas por grupos e etnias rivais que almejavam tomar o poder, já que Zama Rei e Roman estão diretamente relacionados à crise política do país desde 2010. Esta crise foi iniciada pela tentativa do então presidente Laurent Gbagbo de evitar a posse do rival Alassane Ouattara após perder as eleições presidenciais, desencadeando conflitos armados entre os dois grupos2. A polarização violenta se manifesta na história de Zama Rei, por ter criado uma gangue chamada de “micróbios”, e na realidade de uma prisão cindida entre a dupla Barba Negra e Meio Doido – adeptos da manutenção das tradições morais e culturais em torno da lua vermelha – e Lass, defensor da mercantilização da dinâmica prisional para gerar riquezas para si mesmo.
Conforme a narração da história se aproxima do fim, as tensões se intensificam. Roman teme a própria morte, Barba Negra precisa aceitar que sua doença gera impeditivos na continuidade de sua liderança e Meio Doido enfrenta Lass pelo posto de novo líder para o futuro. A resolução desses conflitos dramáticos atinge um clímax que, mais uma vez, simboliza o encontro entre registro histórico, fantasia subjetiva e práticas culturais tradicionais. A violência entre as gangues dentro da prisão leva a um confronto entre elas, a encenação dessa luta se distancia de uma construção realista, a teatralidade da tradição oral novamente se manifesta e a brutalidade do desfecho evoca o despreparo policial. Embora os últimos momentos do filme possam soar abertos e ambíguos demais, “Noite de Reis” desenvolve com uma coerência crescente ao mostrar o poder da contação de histórias a partir da linguagem falada. A importância está na transmissão de memórias e conhecimentos, na elaboração de sentidos para o mundo, na performance prática da cultura, na perpetuação de passados históricos, nos comentários sobre o tempo presente e na vinculação das vidas e emoções dos interlocutores com a história.
“Noite de Reis” pode passar despercebido no catálogo da Globoplay por conta da presença das produções Globo na sociedade brasileira e da falta de hábito ou de oportunidades de assistir as produções oriundas de países africanos. Perder a chance de apreciar outras culturas, realidades históricas, visões de mundo, construções da arte e formas de contar histórias traz prejuízos consideráveis para a sensibilidade artística, para as experiências sensoriais/emocionais e para as reflexões intelectuais. Por isso, é tão importante tentar desbravar a grande oferta de filmes que chegam até nós. Então, por que não fazer desse esforço uma prática contínua no próprio espaço do JUDAS, As botas de? Nos próximos textos da sessão de cinema, poderemos investigar mais a fundo outros serviços de streaming e destacar obras que uma rápida observação pelo catálogo pode não revelar.