De acordo com a sabedoria popular, a expectativa é a mãe da decepção. E o cinema pode ilustrar essa lição do senso comum em muitos momentos sob diferentes formas. Quem nunca se interessou em acompanhar as notícias da produção de algum filme? Assistiu a todos os teasers e trailers antes da estreia oficial? Ou procurou comentários e críticas publicados após as primeiras sessões? Por um lado, tais práticas podem ajudar os espectadores a se decidirem se assistem ou não à obra (considerando os preços cada vez mais caros de uma sessão de cinema e a oferta tão grande de filmes em vários meios possíveis). Por outro lado, o excesso de informações também pode criar expectativas que levam o público a criar um filme em suas mentes e esperar que esta imagem previamente construída seja satisfeita. Se não for visto na tela o que se esperava a frustração está estabelecida.
Notícias, teasers e trailers são recortes mercadológicos que pretendem divulgar uma obra a partir de temas ou imagens que tenham apelo e provoquem engajamento nas redes sociais. Comentários e críticas são impressões subjetivas que dizem respeito à experiência de quem os produziu, não significando a mesma reação em todo o público. Logo, nenhum dos materiais citados consegue determinar o impacto que qualquer filme pode ter junto a cada espectador. Entretanto, quando se trata de Jordan Peele, o desafio é se manter alheio às repercussões a respeito de um novo projeto do cineasta. Isso porque “Corra!” e “Nós” geraram muitos debates, estimulando assim especulações quanto aos próximos trabalhos e a sua sensibilidade artística. Mais difícil ainda é se manter imune a qualquer informação ou conteúdo divulgado na imprensa, evitando assim imaginar sobre o que é seu novo filme.
Considerando-se tudo isso, este texto é uma crítica e um relato de experiência. Crítica por propor uma ideia sobre “Não! Não olhe” que nos faça refletir a respeito das escolhas criativas do realizador e dos efeitos por elas desencadeadas. Relato de experiência por partilhar minha relação com a obra a partir, prioritariamente, das sensações possibilitadas pela narrativa sem contar com tanto conhecimento prévio à sessão. Não acompanhei notícias, não assisti aos trailers nem li as primeiras impressões. Também não procurei a sinopse. Foi através da sessão que tomei contato com a história dos irmãos Haywood, o casal Otis Junior (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer), que tem um rancho de cavalos para domesticá-los para filmes hollywoodianos. Eles vivem próximos a um parque de diversões inspirada no velho oeste administrado por Ricky ‘Jupe’ Park (Steven Yeun). Todos testemunham estranhos eventos vindos do céu, que os colocam sob grande perigo.
Não saber nada antes de entrar no cinema me proporcionou um sentimento principal desde a abertura: surpresa. Tudo era novo, todo detalhe era uma descoberta e qualquer imagem tinha o frescor da novidade de ser assimilada pela primeira vez, e não reproduzida como mais um ato mecânico de um clique em uma página no mundo virtual. Ao ser surpreendido por cada plano e cena, sentia-me inserido em um mistério no qual precisaria me orientar para compreender o que acontecia, até porque Jordan Peele nunca está interessado em fornecer algo mastigado e já explicado para o espectador. Sendo assim, as primeiras sequências já são capazes de provocar curiosidade e assombro. Na primeira, o áudio de uma sitcom cômica sobreposto aos créditos iniciais é seguido por fatos violentos no estúdio do programa. Na segunda, a apresentação de Otis Junior é feita em uma situação aparentemente prosaica que se descontrola para uma tragédia inesperada (sugerida apenas pelo desenho sonoro).
Evitar maiores detalhes também dificulta criar expectativas com base nos projetos anteriores do diretor. Levando em consideração “Corra!” e “Nós”, seria possível imaginar que seu novo projeto giraria em torno de alguma crítica ou comentário social mais explícito. De certa forma, seria até possível imaginar que parte dos espectadores “cobraria” esta abordagem. Após falar sobre o racismo e a desigualdade social nos EUA, qual seria o próximo tema a ser trabalhado? Em nenhum momento, esta visão parece ponderar que Jordan Peele poderia, dessa vez, se propor a criar algo diferente. Ainda poderia conter alguma reflexão sobre a sociedade contemporânea, mas também apresentar outra abordagem narrativa. E “Não! Não olhe” se propõe a ser outra experiência cinematográfica, mesmo que mantenha a ideia de que o direcionamento do olhar seja essencial para a narrativa.
As questões sociais continuam presentes em maior ou menor proporção. Na apresentação das medidas de segurança para o uso de cavalos nos sets de filmagem, Emerald faz questão de lembrar que sua família descende do jóquei negro fotografado galopando por Eadweard Muybridge em seus experimentos sobre a captura de imagens em movimento. Na fala da jovem, fica evidente o esforço para mostrar que pessoas negras fazem parte da história do cinema desde seus primórdios e sofrem um processo de invisibilização para não receberem o devido destaque. Além de fazer referência à história do cinema, esta citação dialoga com o que se verá mais à frente, especialmente o plano dos protagonistas no terceiro ato para conseguir captar a ameaça misteriosa dos céus.
Por outro lado, o desejo de ver suas especulações iniciais refletidas na tela pode afetar a forma como o público entra no universo proposto pelo diretor. Nesse sentido, achei curioso como o primeiro ato se desenvolve em um ritmo mais cadenciado do que já se havia visto até então em sua carreira. Ao invés de combinar a caracterização dos personagens com um roteiro repleto de situações mais dinâmicas ou aceleradas, o realizador opta por postergar um pouco mais a construção da tensão. Logo, os primeiros minutos servem para conhecermos a autenticidade cômica de Emerald, vivida com grande espontaneidade por Keke Palmer para dar vazão às suas piadas e ao seu figurino chamativo e contrastar com o irmão. Enquanto isso, Daniel Kaluuya traduz a personalidade contida de OJ através da postura rígida e dos silêncios recorrentes, algo que vem dos traumas de uma tragédia familiar abrupta, sem deixar de transmitir a força e o carinho do personagem no adestramento dos animais (ponto que será destacado quando assume uma posição mais ativa no conflito geral da trama).
Em contrapartida, nem todas as tentativas de fazer algo diferente surtem tanto efeito. A experimentação de novas escolhas artísticas pode ser observada no uso da comédia em histórias de terror. Se em “Corra!”, a presença do protagonista estabelecia um humor crítico, e em “Nós”, a sequência do assassinato dos vizinhos produzia um humor irônico sob medida, “Não! Não olhe” opta por seguir em outra direção. Jordan Peele cria um tipo de comédia de costumes ou de situações que não escapa do convencional, em especial o contraste entre a espontaneidade de Emerald e a sisudez de OJ, e a entrada “inconveniente” de Angel nos planos para descobrir a origem dos estranhos eventos no céu. O humor se sai melhor quando se relaciona com a questão do som, algo que se torna vital para a construção dos momentos mais assustadores da narrativa, como na cena em que Rick ‘Jupe’ Park mal consegue conversar com os irmãos Haywood por estar muito distante e fora da propriedade deles.
Há ainda outros elementos da construção dramática que podem decepcionar parte do público que já teorizava sobre o que seria o filme. Mesmo que “Corra!” e “Nós” se sustentem em uma série de mistérios que levante muitas perguntas, ambos acabam oferecendo chaves possíveis de análise e compreensão maior (até “Nós” que possui uma carga alegórica mais aberta). Já “Não! Não olhe” parece não se preocupar em contextualizar tanto alguns arcos, principalmente aquele que conta sobre a trajetória de Jupe. O rapaz de fama precoce, que ganhou notoriedade a partir de dois programas que fez enquanto criança, é exposto a um grande trauma ao presenciar cenas extremamente violentas nos estúdios de filmagem de sua sitcom, envolvendo um chimpanzé. Se alguém esperar uma explicação didática do que aconteceu, a frustração chegará porque Jordan Peele não está interessado em dar razões para fatos tão brutais.
Outro motivo de decepção pode vir do trabalho de montagem que estrutura a trama. De tempos em tempos, tinha a sensação de que alguns trechos poderiam fazer da narrativa, mas foram conscientemente retirados para ampliar o tom de mistério ou para assegurar uma rota específica para o filme. A montagem trabalha com elipses que podem deixar uma curiosidade maior para os significados de certos símbolos, como os objetos caídos do céu no primeiro ato (em especial, a moeda com “In God we trust” registrada diretamente com alguns planos detalhes) e a relação da tragédia no passado de Jupe com o arco da família Haywood. Parte do público pode resistir a essa característica da obra por não ver tantos símbolos ou elementos dramáticos desenvolvidos e, assim, encarar como um problema.
No entanto, e se olharmos para a questão por outro ângulo? E se a proposta de Jordan Peele, dessa vez, não for trabalhar tanto a simbologia e a discussão social da história? A partir de determinado instante, comecei a me perguntar se o interesse, na realidade, não seria proporcionar prioritariamente uma experiência sensorial particular. As referências com as quais o realizador dialoga sugerem essa possibilidade: obras como “Contatos imediatos de terceiro grau” de Steven Spielberg e “Sinais” de M. Night Shyamalan, além das histórias de alienígenas próprias das décadas de 1950 e 1960. Então, a proposta sensitiva parte da combinação específica de terror e ficção científica que lembra um episódio da série “Além da imaginação”, ou seja, ser uma história mais contida que afete o espectador em suas sensações corporais.
Quando os eventos estranhos começam a acontecer, ficam mais evidentes os impactos sensoriais através da importância que possui o desenho sonoro. Na primeira noite em que OJ suspeita que pode haver algo ameaçador ao redor de seu rancho, são os ruídos diegéticos que sinalizam a existência de algo não humano naquele local. O protagonista (e nós espectadores) ouve a agitação de um cavalo e da pressão do animal em fuga sobre a cerca. Ele vai atrás do cavalo para levá-lo de volta para a propriedade e escuta os ruídos eufóricos do parque de diversões de Jupe ao longe. Os sons diegéticos são, provisoriamente, suspensos e o silêncio se estabelece por um tempo. O silêncio só é quebrado no momento em que algo desliza rapidamente entre as nuvens. Assim como o protagonista, o espectador se sente aturdido diante do que ouviu e viu, tentando decifrar o que era.
A segunda sequência de maior tensão promove impactos ainda mais duradouros. Foi especialmente com essa que senti meu corpo reagindo à construção feita por Jordan Peele. A criatura vinda do céu faz seu primeiro ataque e absorve suas primeiras vítimas, mas a apreensão se inicia antes dessa ação específica. Primeiramente, o diretor constrói meticulosamente com planos longos e de poucos cortes a investigação de Otis no estábulo, em busca dos ruídos incomuns ouvidos à noite e dos flashes de imagens enigmáticas captadas pelas imagens instaladas por ele na propriedade. A partir daí, nossas expectativas são subvertidas constantemente: a aparição inesperada de alienígenas tem um desfecho cômico e a transição para a loja onde Angel trabalha também começa com a insinuação de que ele pode estar sob o risco de ser atacado e acaba com outra resolução cômica. Quando nos sentimos seguros, o ataque enfim acontece e o desenho sonoro traduz isso através da captura abrupta dos sons de aparelhos eletrônicos do lugar.
Mesmo que o desenho sonoro chame atenção, a questão do olhar, tão cara aos trabalhos de Jordan Peele, continue presente. O diretor nos convida a examinar detalhadamente cada traço do rancho, graças aos planos gerais criados com profundidade de campo elevada. Sendo assim, nossos olhos se iluminam diante da possibilidade de contemplar a potência visual de cada imagem e de observar um vasto quadro explorado em sua magnitude pela relação entre espaço e movimentação dos personagens. Além disso, quando alguma criatura parece se esconder e se movimentar pelo céu, nosso olhar é levado a seguir o deslocamento vertical da câmera cada vez mais para o alto à procura de algum sinal. Porém, existe uma contradição no uso alegórico do olhar, que surge como mais uma ameaça. Observar as criaturas pode aumentar o perigo e gerar consequências violentas ou agressivas, como o chimpanzé no estúdio de TV, o cavalo no estúdio de cinema e a própria criatura do espaço.
É como se estivéssemos diante de um anti-filme Jordan Peele, no qual o olhar deve ser evitado e não buscado. Em “Corra!” e em “Nós”, os olhos de Daniel Kaluuya e de Lupita Nyong’o estão sob risco ou simbolizam alguma ameaça, mas também representam metaforicamente um novo olhar dado pelo diretor ao cinema de terror. A ocultação do olhar gera mais impactos sensoriais nas sequências de ataques na gravação da sitcom e no parque de diversões. No primeiro caso, uma tela escura impede que possamos discernir o que acontece em meios aos gritos e baques de objetos caídos enquanto várias pessoas são assassinadas no estúdio; ainda que as imagens voltem a aparecer, muitos elementos são vistos apenas de relance e ações mais violentas são escondidas por objetos cênicos. No segundo caso, o olhar também é, em parte, negado e resta apenas o som para guiar o público, que imagina o que pode estar ocorrendo no parque em meio à confusão de sons inumanos vindos do céu e humanos vindos das vítimas desesperadas. O único ponto de referência pelo olhar está ligado ao close em um personagem, levando-nos a especular como é o ataque a partir de sua expressão chocada. No fim dessa sequência, os efeitos sonoros ainda produzem uma sensação profunda de perturbação ao escutarmos os últimos sons proferidos pelas vítimas.
Reconhecer que a proposta por uma experiência sensorial significativa seja a escolha central não significa dizer que não há discussão temática. A diferença é que o desenvolvimento da dramaturgia e dos comentários sociais é mais discreto em comparação com a construção estética. Dessa vez, Jordan Peele trabalha o lado sombrio da sociedade do espetáculo existente em diferentes esferas: pessoas que cultuam tragédias como eventos dignos de celebração a ponto de monumentalizá-las ou de consumi-las enquanto produto; outros indivíduos que buscam a fama através da captura de imagens perfeitas de acontecimentos fora do comum e da sua exposição na mídia, apesar de se colocarem em grande risco; e mais algumas pessoas que acreditam poder dominar criaturas perigosas em seu benefício pessoal sob a falsa ilusão de terem alguma capacidade especial. Este último recorte, inclusive, ajuda a iluminar o arco de Jupe da sua infância até a vida adulta.
Por mais que a narrativa desenvolva gradualmente o tema do desejo arriscado pelo espetáculo fácil, o objetivo de criar sequências que continuem atingindo as sensações corpóreas do espectador a partir do que ele vê ainda tem importância central. É o que se pode observar na quarta sequência de ação que carrega a mais alta dose de tensão, quando OJ, Emerald e Angel são colocados em uma situação altamente arriscada. Os três personagens são divididos enquanto a criatura se aproxima de todos de alguma maneira. Ao longo de toda a sequência, os sons dissonantes perturbam ainda mais por parecerem uma tecnologia incompreensível e grandiosa demais para os limites humanos, que consegue se incorporar ao estilo da trilha sonora; a fotografia potencializa a opressão com a combinação de chuva, escuridão da noite e cor vermelha representativa da violência da situação. Simplesmente por observar essas cenas, já conseguia me sentir incomodado, angustiado e amedrontado frente à possibilidade de não encontrar segurança em um ambiente fechado e de não conseguir controlar o olhar e procurar no céu de onde vem a ameaça.
Então, Jordan Peele consegue integrar a tradição expressiva do olhar em seu cinema com o alcance que pode ter nas respostas fisiológicas do corpo do espectador. No desfecho, o diretor orquestra um clímax carregado de potência cinematográfica de modo a valorizar o poder histórico e dramático das imagens e dos sons. No plano final dos protagonistas, há o simbolismo da apropriação da figura do jóquei negro montado no cavalo, usos variados dos efeitos sonoros (a suspensão do som diegético para fins de horror, os ruídos dissonantes oriundos dos ataques da criatura e a sonoridade sombria da voz de um novo ajudante conseguido por OJ e Emerald) e a exploração do espaço cênico para a intensificação do suspense. Embora boa parte do filme tenha sugerido que o olhar poderia significar uma destruição completa, o princípio artístico de Jordan Peele segue sendo aquele que gira em torno do triunfo do olhar contra as interdições e as ameaças colocadas pelo conflito narrativo.
Depois dos parágrafos que compõem esse texto, um paradoxo poderia se estabelecer. Se a ideia que defendi é a de que poderíamos nos precaver contra o perigo da decepção por excesso de expectativas sobre os filmes, deixando de lado a abundância de informações de divulgação e comentários, por que um texto tão detalhado que aborda certos aspectos relevantes de “Não! Não olhe”? De fato, esta crítica poderia cumprir o papel oposto. Portanto, pense em como seria mais proveitoso procurar e refletir com a crítica após assistir ao filme. Pense no efeito emocional de assistir a algo do qual não conhece nada de antemão e poder ser surpreendido. Fazendo isso, pude desfrutar de uma experiência sensorial com o novo projeto de Jordan Peele que se baseou na diferença positiva em relação aos seus trabalhos anteriores. Quem sabe assim não poderíamos nos entregar ainda mais de corpo, alma e olhar para o cinema?
