Em meados de fevereiro de 2022, chegou ao Brasil o novo filme de Pedro Almodóvar, “Mães paralelas“. Além de ter sido lançado em algumas salas de cinema, o projeto foi distribuído pela Netflix. Aproveitando-se da chegada dessa obra em seu catálogo, a locadora vermelha também disponibilizou outros trabalhos do realizador, como “Volver“, “Carne trêmula“, “Má educação“, “Kika“, “Fale com ela” e “A lei do desejo“. Temos a oportunidade de mergulhar na filmografia de um artista de sensibilidade muito singular, apreciando títulos bastante diversos que conseguem mobilizar seu estilo característico e trazer algo próprio que não o faça parecer a reciclagem de algo já visto anteriormente. Não conseguimos nos deter sobre tudo que ele já produziu, mas podemos tomar “Mulheres à beira de um ataque de nervos” como objeto de análise para conhecer um pouco sobre o diretor espanhol. Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Antes de entrarmos na produção em si, precisamos contextualizar quem é Pedro Almodóvar Caballero. Nascido no município de Calzada de Calatrava na província de Ciudad Real, começou a filmar seus primeiros trabalhos na metade da década de 1970, um período conturbado na história da Espanha. Chegava ao fim a ditadura de Francisco Franco após mais de 30 anos de duração, regime que se apoiou no conservadorismo religioso castrador e na violência extrema contra a oposição política. Não por coincidência, suas primeiras obras apresentam um caráter provocativo no humor, na composição visual, na representação dos costumes e nas críticas mordazes a figuras hegemônicas. 1. Por mais que a estética do cineasta tenha se transformado com o passar do tempo, alguns pontos marcantes se sustentam, em especial o uso de cores e a abordagem de personagens femininas.
No design de produção de seus filmes, as cores tendem a ser intensas e complementares entre si, digno de um arco-íris no qual o vermelho é um vermelho poderoso, o amarelo é um amarelo significativo, o laranja é um laranja destacado e assim por diante. No entanto, não se tratam de escolhas gratuitas sem princípio estético norteador, nem se igualam ao aspecto lúdico e outsider da paleta de cores criada por Wes Anderson. A ideia é reforçar a mistura de comédia e drama de seus projetos a partir da construção narrativa de cada um deles. Em sintonia, as personagens femininas possuem uma caracterização complexa e multifacetada, que as fazem atravessar jornadas próprias sem que estejam a um olhar objetificante ou limitador, inclusive a partir de desejos sexuais, orientações sexuais e identidades de gênero variados sem qualquer moralismo. Nesse sentido, algumas atrizes se tornam musas de sua filmografia, como Carmen Maura, Cecilia Roth, Rossy de Palma, Marisa Paredes e Penélope Cruz.
Dito isso, “Mulheres à beira de um ataque de nervos” sintetiza quem é Pedro Almodóvar sem deixá-lo refém das abordagens que poderiam envolvê-lo em uma camisa de força. A cada nova produção, o cineasta exercita seu estilo para experimentar diferentes possibilidades narrativas e dramáticas. No filme de 1988 não é diferente. Na trama, Pepa Marcos (Carmen Maura) é uma atriz que foi recentemente abandonada, grávida, pelo amante e também ator Ivan (Fernando Guillén). Enquanto tenta encontrá-lo, ela recebe a visita da amiga Candela (María Barranco) amedrontada com o risco de ser presa por estar apaixonada por um homem desconhecido que se revela um terrorista xiita. No meio de tudo isso, Lucía (Julieta Serrano), a mulher de Ivan, descobre a traição do marido e decide matá-lo.
Os primeiros minutos são precisos para evidenciar como a narrativa se desenvolverá. Os créditos iniciais utilizam imagens estilizadas, cores vibrantes e uma canção expressiva para -simultaneamente – apresentar os nomes envolvidos no filme e dar o tom do que se verá na progressão da história. Tais imagens apresentam uma artificialidade significativa, quase surrealista ao integrar objetos, animais e figuras humanas para indicar os atores e atrizes presentes no elenco; além de um simbolismo direto (ao associar certas ilustrações a elementos da linguagem cinematográfica, como uma banda remeter à trilha sonora e o ato de tesouras cortando olhos remeter à montagem). Além disso, a música “Soy infeliz“, que toca nos créditos iniciais, representa o estágio inicial de angústia da protagonista ao não ter sua paixão devidamente correspondida.
Nas primeiras cenas após os créditos iniciais, a construção de um universo estilizado que não prima pelo minimalismo dos efeitos continua a partir da trilha sonora. Na primeira narração em voice over de Pepa, a trilha sonora assume uma melodia dramática como indicação de que um grande sofrimento está em curso e sendo sentido, quando ela explica que tinha vontade de ter um casal de cada espécie animal no terraço do seu apartamento (tal qual Noé fez em sua arca para proteger do dilúvio), mas não conseguiu preservar seu próprio casal. Na segunda narração em voice over, proferida por Ivan, o mesmo impacto dramático ocorre quando ele discursa no questionamento de não conseguir se imaginar sem a presença da amada por perto. Pouco tempo depois, a composição musical se transforma para uma sensação de suspense como se ela anunciasse a iminência de algo trágico, sobretudo após Pepa tentar se comunicar com Ivan, quando esta não consegue atender uma ligação dele.
Tais aspectos fazem muito sentido se considerarmos o tipo de gênero cinematográfico que se constrói. Em um primeiro olhar precipitado, as escolhas poderiam parecer excessivas, algo que pudesse afastar os espectadores que estranhariam aquele universo. No entanto, é importante pensar que determinados filmes exploram uma abordagem estilística pautada pelo “mais é mais”, ou seja, pelo aproveitamento das potencialidades do uso artístico do exagero. Segundo um dos vídeos criados por Max Valarezo no canal Entreplanos, estes filmes são maximalistas e podem gerar impactos grandiosos através do grande orçamento financeiro, da composição do quadro, da escala dos acontecimentos…, podendo ser blockbusters, dramas de época da Hollywood clássico (“E o vento levou” e “Lawrence da Arábia”, por exemplo) ou trabalhos de diretores de estilos marcantes (Federico Fellini e Wes Anderson, por exemplo)2. É possível também incluir o melodrama e Pedro Almodóvar no cinema maximalista, já que o melodrama se estabelece a partir do exagero dos gestos dos atores, do grau intenso de sofrimento dos personagens até alcançar seus objetivos, da intensificação dos relacionamentos e das emoções, do uso de arquétipos e do papel do imprevisível na precipitação dos acontecimentos da trama. 3.
“Mulheres à beira de um ataque de nervos“, então, se assume como um representante do melodrama em termos visuais, narrativos e dramáticos. A grande questão é como Pedro Almodóvar trabalha as convenções ou estilos do gênero de acordo com suas próprias perspectivas artísticas. Uma dessas formas é demonstrar que seu filme é construído diretamente por suas decisões e interferências criativas, dispensando qualquer possibilidade de parecer o retrato objetivo da realidade ou de se filiar a um tipo de cinema clássico que não evidencia seu diretor a todo momento. Para isso, o cineasta recorre a metalinguagem com o intuito de reforçar que o que está em cena não é natural, mas parte das suas escolhas estilísticas. Pepa e Ivan são atores e aparecem interpretando seus próprios filmes ou dublando outros. O discurso inicial de Ivan parece ser uma resposta à narração em voice over de Pepa, porém logo se revela parte do texto da dublagem que faz para certo trabalho. E as reações intensas da protagonista ao não conseguir se comunicar com o amante são preparadas com uma cena que se inicia com a incidência da luz de um projetor cinematográfico sobre uma tela, junto ao trabalho de atuação da mulher. Se ainda houver alguma dúvida: em certa altura, um motorista de táxi exclama: “Isso até parece um filme”.
Embora o melodrama possa ser apropriado com intenções diversas de seus impactos originais, Almodóvar também busca referências básicas do gênero. As três principais personagens femininas que movimentam a história são movidas por conflitos dramáticos nada sutis ou discretos: Pepa se esforça acima dos seus limites para reencontrar Ivan e poder entender as razões para seu desaparecimento, principalmente porque se descobrirá mais à frente que este relacionamento gerou desdobramentos mais complexos. Lucía não se conforma com o fato de ter sido traída pelo marido justamente no momento em que esteve mais vulnerável física e emocionalmente após o parto de seu filho Carlos (Antonio Banderas), por isso também está em busca de Ivan. E Candela se desespera por ter se relacionado com um homem desconhecido até descobrir que se tratava de um terrorista xiita, o que a faz buscar ajuda da amiga Pepa para não ser presa como cúmplice. É interessante perceber que as três subtramas são inseridas de modo melodramático, já que a protagonista inicia a produção absolutamente angustiada como se não pudesse reverter a situação sem maiores sofrimentos; a ex-esposa se coloca como uma antagonista de Pepa prestes a confrontá-la a qualquer instante e a amiga surge repentinamente com um dilema bastante diferente do que se via até então.
Ao invés de ser uma característica específica apenas dos créditos iniciais, a estilização persiste ao longo da narrativa e também ajuda a definir o melodrama. Como os arcos das principais personagens envolvem um furor emocional intenso, a cenografia acompanha esse aspecto e apresenta uma riqueza muito grande de detalhes e de cores vibrantes. O apartamento de Pepa é constantemente filmado de maneira a mostrar o fato incomum que é um terraço de prédio abrigar diferentes espécies animais (galo, pato, coelho…), assim como os adereços de outras moradias contêm traços bem marcados, como a porta de entrada do apartamento de Lucía. Acima de tudo, o espaço que mais recebe uma caracterização estilizada é o interior do táxi do motorista que aparece frequentemente nos momentos em que Pepa mais necessita, sendo composto por bancos com estofados de pele de onça e inúmeros itens em cada canto do veículo (revistas sendo alugadas, jornais vendidos, medicamentos sendo ofertados, adesivos diversos sendo expostos…). É curioso perceber que, pelo lado de fora, jamais se imaginaria que caberiam tantos objetos no táxi e que se ouviria mambo ao longo da viagem, tal qual um universo à parte que se acessa ao abrir a porta.
O tempo passa, as três mulheres com maior destaque vivenciam seus próprios conflitos (muitos deles entrelaçados) e a noção de exagero encontra sua unidade em mais elementos cinematográficos. O roteiro assinado por Pedro Almodóvar se baseia na decisão de desenvolver a trama a partir da ideia de exagero e superlativo, não buscando acontecimentos, resoluções e reviravoltas comuns, naturais e minimalistas. A traição de Ivan pode não ser apenas uma e seria necessário flexionar o substantivo no plural; as peripécias de Pepa envolvem reações emocionais impetuosas (como colocar fogo na cama do seu quarto) e sequências de ação inesperadas (como as perseguições de carro a quem se relaciona com os conflitos da protagonista); alguns personagens tem seus caminhos cruzados por culpa do imponderável da vida, como o encontro de Pepa com Carlos e sua noiva Marisa (Rossy de Palma) e as interações entre eles devido ao relacionamento com Ivan e a o aluguel do apartamento; a tentativa de suicídio de Candela por se descontrolar frente ao medo da prisão; e o confronto entre Pepa e uma advogada como desdobramento de uma interação surpreendente. Outros momentos reafirmam o princípio geral de um caos consciente para a trama.
Sob outro ângulo, o melodrama é ressignificado e não obedece simplesmente às suas convenções mais imediatas. Em outros filmes do gênero, o componente dramático prevalece em relação à comédia (apesar de este também ter uma posição que não se pode menosprezar). No caso desta obra de Almodóvar, é difícil hierarquizar qual dos dois gêneros estaria em maior intensidade, uma vez que alguma cena pode começar dentro do drama e terminar dentro da comédia e vice-versa subvertendo impressões iniciais do melodrama. Nesse sentido, a comédia também é exagerada sob a chave da farsa, da ironia ou do burlesco: o mesmo taxista sempre aparece nos momentos em que se tem pressa para chegar a algum lugar ou uma perseguição está prestes a começar; Pepa se descontrola atirando na parede seu telefone (constantemente quebrado por conta disso) ou um vinil para a rua; a protagonista coloca sonífero no gaspacho (sopa típica do sul da Espanha que leva, principalmente, tomate) e vários personagens bebem, inclusive ela; as viradas na dinâmica de Pepa com a advogada e o inusitado triângulo amoroso formado entre Carlos, Candela e Marisa; e a entrada de uma vizinha e de seu namorado na perseguição a Lucía no terceiro ato.
Superlativo também é a palavra que define a essência da maioria das atuações do elenco. Carmem Maura caracteriza Pepa como uma mulher que sente tudo à flor da pele, sendo inicialmente afetada com grande intensidade pelo desespero de ficar sem Ivan e não entender o porquê de o sujeito se afastar dela sem maiores explicações. Porém, posteriormente, seu arco narrativo a leva transformar seu furor emocional em uma insatisfação diante do machismo de Ivan, além da falta de paciência em lidar com os conflitos dos demais personagens. Já Julieta Serrano insere gradualmente diferentes camadas em Lucía, tornando sua fúria mais complexa com o passar do tempo por conter a frustração gerada pela traição e problemas psicológicos causados pela infidelidade em um momento sensível após sua gravidez. E María Barranco confere a Candela uma vulnerabilidade que pode parecer somente cômica, mas ganha contornos mais dramáticos quando se observa que a fonte de seus temores é um relacionamento abusivo que a faz agir de maneira imprevisível. As três atrizes seguem o exagero como marca de suas performances, embora a progressão da narrativa faça com que esse estilo tenha particularidades em cada uma.
As particularidades vêm de um subtexto que cresce à medida que o filme se desenrola: as reações emocionais das mulheres são respostas possíveis ao machismo representado por Ivan ou por algum outro personagem masculino, ao invés de serem encaradas como neuroses femininas de quem não consegue lidar com suas próprias emoções. Pepa e Lucía reagem como podem às traições cometidas por Ivan, alguém que não se importa com os sentimentos das pessoas com quem se relaciona (como se tudo girasse em torno dele mesmo). Candela precisa evitar o risco da prisão após a captura do terrorista com quem se relacionou, porque se envolveu com um homem que considerava a mulher um objeto que poderia tratar friamente e até compartilhar com outros homens. Até Marisa, que tem menos tempo de tela, atravessa uma jornada própria de enfrentamento das decepções provocadas pelo noivo Carlos em relação ao aluguel de um apartamento e ao relacionamento entre eles. Como o taxista comenta em determinado instante, as mulheres não são perigosas se forem bem tratadas.
Conforme as subtramas se aproximam de seus desfechos, Pedro Almodóvar reafirma que não está sujeito às marcações fixas de gênero. Na visão artística do cineasta, o melodrama pode passar por reviravoltas e reconstruções para se articular ao universo ficcional criado. Então, se uma narrativa melodramática englobaria arquétipos reconhecíveis, o filme subverte essa expectativa para rejeitar a armadilha de caracterizar as personagens femininas como neuróticas; colocaria os personagens em uma jornada de grande sofrimento para proporcionar seus objetivos ao final. O roteiro novamente subverte essa previsão para mostrar que nem sempre os percursos de vida possuem apenas um destino ou alcançam o que se espera e abraça os imprevistos durante a jornada de obstáculos e facilitações. A produção extrapola a dimensão imprevisível para dar vazão a um mundo de farsas, excessos, intensidade emocional e mistura de sensações.
São esses traços tão heterogêneos que perpassam a conclusão das subtramas. Nada melhor para simbolizar o que é o melodrama visitado pelo diretor do que o clímax ser construído pela junção de ação, comédia, drama e exagero estético. Começando por um inusitado encontro com a polícia em seu apartamento que termina com uma overdose de sonífero e avançando para uma perseguição de carro com troca de tiros; o terceiro ato consolida a unidade estilística que já havia sido preparada nos créditos iniciais. Assim, Candela encontra seu conforto com a ironia dramática de começar outro relacionamento que pode não ser tão seguro quanto ela precisaria. Lucía precisa ser detida para não dar vazão ao perigo que representa para quem a desagradou por alguma razão. E Pepa encontra um sentido muito diferente para si e para Ivan, que não exige que ela se entregue completamente para o homem, tampouco seja tão impulsiva com outras pessoas ao seu redor, pois ela pode simplesmente fazer o que seu coração considera correto. Todos esses arcos se adequam muito bem a uma concepção artística que se apropria e ressignifica o melodrama, sempre tendo em vista que o cinema é uma construção operada subjetivamente pelos seus realizadores. Afinal, a metalinguagem do início evidencia isso.
Quando mergulhamos no universo de Pedro Almodóvar, é muito improvável não ser bombardeado por um turbilhão de cores, sensações diversas, personagens singulares, sensibilidade ímpar e histórias dotadas de um ritmo próprio. Se este é um universo que te atrai e te cativa, as experiências podem se multiplicar e outros filmes podem ser apreciados na Netflix, na Amazon Prime Video, no Mubi ou em outras plataformas possíveis. Títulos como “Dor e glória“, “De salto alto“, “Tudo sobre minha mãe“, “Má educação“, “A lei do desejo”, “Carne trêmula“, “Ata-me“, “Fale com ela“, “Kika” e tantos outros podem novas opções para nossa lista cinematográfica futura. Basta dar o play e aproveitar a riqueza do trabalho de um dos diretores espanhóis mais lembrados da contemporaneidade.