Praticamente um século depois da pandemia da gripe espanhola, o mundo se viu novamente atingido por um mal de proporções devastadoras. Na virada de 2019 para 2020, o coronavírus provocou um ponto de inflexão na história que se compara a marcos para o início ou fim de períodos históricos, como a queda do Império Romano e a Revolução Francesa. Como ainda estamos vivenciando essa grave crise sanitária, é difícil prever como será o futuro em termos de relações sociais e do ethos de uma nova realidade. Qualquer que seja o porvir, ele não poderá se desvincular dos impactos negativos que o último ano deixou para países, comunidades, grupos, famílias e indivíduos.
Milhares de pessoas sofreram e sofrem com a parda de familiares e amigos. Inúmeras pessoas perderam empregos, casas e a possibilidade de três refeições ao dia. Hospitais foram afetados pelo número crescente de pacientes em um pequeno intervalo de tempo. Escolas e universidades passaram longos períodos fechadas. Parentes e colegas estavam e estão meses sem poder se ver. Casos de depressão e ansiedade se multiplicam cada vez mais. Novos hábitos foram inseridos com o uso, por exemplo, de máscara e álcool em gel. Negacionistas questionam sem qualquer base as orientações da ciência pelo distanciamento social e pela vacinação. Esses e outros pontos são sensíveis para se viver, pensar ou falar sobre, até porque a essa altura não há mais alguém que não tenha passado por alguma dessas dores.
Se pensarmos por outra linha de raciocínio, o coronavírus também virou nossas vidas de pernas para o ar em uma dimensão aparentemente banal. Enquanto não podemos retomar a proximidade física por razões de segurança sanitária, nosso cotidiano mergulha cada vez mais no universo virtual para além da dependência em relação ao celular e às redes sociais. Na atualidade, incorporamos ao nosso vocabulário e às nossas práticas aulas/cursos em plataformas digitais, reuniões em aplicativos como Zoom e Google Meet, apresentações variadas em lives e conteúdos dinâmicos no Instagram, TikTok ou na Twitch. Afinal, muitos foram aqueles que compartilharam a visualização da tela com outras pessoas e perguntou “Estão vendo?”; que tiveram a imagem travada ou a conexão derrubada por oscilações na internet; que falaram algo com o microfone desativado; que se questionaram se as pessoas “logadas”, de câmera e microfone desativados estavam presentes com a pergunta “Vocês estão aí?”.
Inicialmente, a cultura do online despertava a curiosidade do público e dos profissionais de diversas áreas. Basta lembrar a empolgação inicial de assistir às lives de cantores, cantoras e bandas para resgatar as sensações nos primeiros meses da pandemia em 2020. Porém, o tempo passou, as lives musicais rarearam e o online entrou em uma fase de saturação por ter se impregnado tão intensamente em nossas vidas. Professores e estudantes se sentem exaustos com as exigências do ensino à distância, interações entre familiares e amigos dependiam de reuniões virtuais, pessoas sem acesso à internet vivenciam outras facetas das desigualdades socioeconômicas e o trabalho invadiu como nunca os momentos de descanso e os ambientes domésticos. Resumidamente, estamos em um mundo cercado por telas de celulares, computadores e TVs, que influenciam nossos cotidianos.
As consequências do mundo virtual e da pandemia também atingiram o cinema. Salas de exibição precisaram ser fechadas por um período considerável, cinemas de rua passaram e passam por dificuldades financeiras (alguns deles sendo fechados permanentemente) e trabalhadores/trabalhadoras da área igualmente passaram e passam por problemas econômicos. Com o passar dos meses, outro impacto se revelou no meio cinematográfico: como ficariam os festivais de cinema se as aglomerações não eram viáveis? Alguns desses eventos foram adiados (como o Festival de Cannes na França), outros precisariam de apoio financeiro dos cinéfilos para sobreviverem (como o Festival do Rio, afetado também por outras crises no Brasil) e mais alguns se reformularam para acontecer em um formato online com parceria ou não com serviços de streaming.
Em um primeiro instante, festivais transmitidos em plataformas digitais podem desencadear reações céticas quanto à sua força. Para aqueles que cresceram tendo uma relação afetiva com o espaço físico do cinema pode não ser a mesma experiência acompanhar tantos filmes em casa com os aparelhos à disposição. Além de recordações nostálgicas de sessões prazerosas na sala grande e escura, esse local específico de projeção realmente proporciona um contato especial com as obras de arte graças à arquitetura discreta, à iluminação imersiva, à alta resolução das imagens e sons em tecnologias avançadas e ao ambiente voltado para a experiência cinematográfica (ressalvas feitas ao perfil de público contemporâneo que conversa e utiliza o celular durante as sessões). Por mais que as residências possam abrigar aparelhos de TV e equipamentos de som mais modernos, elas possuem limitações técnicas e espaciais (cômodos incapazes de emular integralmente uma sala de cinema) e distrações a uma completa imersão (sons da vida cotidiana, por exemplo).
Outro elemento que faz falta nos festivais online diz respeito a uma dimensão de presença. Estar nos espaços físicos e concretos onde os filmes são exibidos por algumas semanas, possibilita uma vivência agradável, pontuada por momentos significativos. É assim, por exemplo, quando precisamos consultar os guias de programação com o desafio de encaixar o maior número possível de produções em cada dia; ou quando reservamos tardes e noites para mergulharmos em um universo particular de experiências audiovisuais; ou quando atravessamos bairros e ruas para ir de um cinema a outro; ou ainda quando passamos de uma sessão a outra tendo pouco tempo entre elas. Não podemos romantizar o cansaço que a imersão em festivais presenciais pode gerar (sobretudo, se a disposição for de assistir ao máximo de títulos que conseguir e se for um crítico ou crítica de cinema precisando escrever sobre o que viu), mas também não podemos desmerecer como o envolvimento com o evento alcança nossos corpos em um nível sensorial.
Certamente, ainda há as possibilidades dos encontros permitidas por festivais presenciais. Espectadores podem combinar de assistir às sessões juntos, potencializando a experiência coletiva de ver e vibrar com as sensações que os filmes transmitem. Da mesma forma, críticos e críticas podem interagir regularmente, comentando o que viram e trocando percepções. No entanto, as trocas não se resumem somente a pessoas já conhecidas, já que os desconhecidos partilham um interesse em comum que os aproximam e fazem conviver por causa daquela ocasião em especial. Então, enquanto aguardamos o início de uma sessão podemos conversar sobre o que está passando, compartilhar expectativas, frustrações e elogios, dar recomendações de títulos menos badalados e criar vínculos improváveis em outras circunstâncias.
São tantas as potencialidades dos festivais presenciais que os formatos virtuais despertam dúvidas a respeito do que poderiam proporcionar de positivo. Em um primeiro instante, a falta da experiência da sala de cinema, do contato mais imediato com os ambientes de exibição e a da interação com outras pessoas seriam aspectos decisivos para tornar os festivais online menos prazerosos. Porém, a realidade ainda é outra e, como levaremos tempo até regressar a esse tipo de aglomeração, precisamos nos abrir mais para outras possibilidades ricas à sua maneira. Imediatamente, podemos notar que as tecnologias têm a capacidade de reduzir o problema das distâncias: se anteriormente um evento ocorrido em algum estado do país receberia um público majoritariamente local, agora o alcance se ampliou oferecendo a oportunidade dos brasileiros dos quatro cantos do país de participar de eventos até então dificultados por razões geográficas. A partir de celular e computadores, os espectadores interessados têm acesso a uma gama variada de produções.
Tal variedade se reflete nas diferentes propostas que os festivais podem ter. Alguns deles já têm um nome mais consolidado junto ao público, cinéfilo ou não, e se propõem a exibir obras que tiveram ou vem tendo repercussão ao redor do mundo (sendo que determinados títulos recebem suas primeiras exibições antes do lançamento comercial). São os casos, por exemplo, da Mostra de São Paulo, do Festival do Rio, do Festival de Gramado e do Festival de Brasília, estabelecidos como referências para a cultura cinematográfica brasileira. Com outras perspectivas, existem também mostras dedicadas aos filmes mais experimentais, independentes e disruptivos da linguagem clássica do cinema. São os casos do Olhar de Cinema de Curitiba, da Mostra de Tiradentes e do Festival Ecrã originário do Rio de Janeiro (este inclusive voltado para repensar os cânones do que seria produção audiovisual, por incentivar performances que integram vídeo e corpo, games e instalações/videoartes/artes interativas.
Dentro da diversidade de estilos dos festivais, podemos também pensar como segmentos específicos do público são contemplados. Alguns eventos podem atender a recortes e nichos que possuam um gosto pronunciado por certo gênero cinematográfico ou abordagem artística. Desse modo, 2020 e 2021 ofereceram aos fãs de filmes de terror, fantasia ou ficção científica festivais como a Mostra MacaBRo (destinada ao horror brasileiro contemporâneo), o Fantaspoa e o Cinefantasy (dedicados a exibição do cinema fantástico); e possibilitaram a todos os apreciadores de documentários ter contato com produções realizadas na América do Sul através do É Tudo Verdade. Logo, a linguagem online contribuía para desmistificar a percepção de que os espectadores teriam acesso apenas ao que a Netflix oferece em seu catálogo, considerando-se as críticas que o streaming recebe em relação à curadoria, às definições do algoritmo e à oferta menor de filmes clássicos.
É interessante como a questão da variedade dos festivais e seu acesso diferenciado a eles se desdobra para além da apreciação estética das obras selecionadas. E não se trata de reduzir a importância da experiência espectatorial, mas de valorizar o quanto essas mostras se preocupam com a construção de conhecimento e a troca de percepções sobre o fazer artístico. Tal preocupação se manifesta nas demais atividades formativas organizadas, como entrevistas, oficinas e mesas de debate com críticos, pesquisadores e realizadores. Se não existissem essas interações, como seria possível ter a oportunidade de ouvir e aprender com a pesquisadora Robin R. Means Coleman, autora do livro “Horror Noire: A história do horror negro”, sobre a representação da população negra do cinema de terror estadunidense? É possível por conta das escolhas de festivais como o Cinefantasy, que organizou este debate (sob a mediação de Carissa Vieira e Filippo Pitanga) e outros espaços de formação e reflexão1.
Quanto mais os festivais online se sucedem durante a impossibilidade de festivais presenciais ocorrem no Brasil, mais consequências alcançam as possibilidades das artes no momento. Se estas mostras precisam de parceiras, diferentes serviços de streaming hospedam a seleção de filmes, como aconteceu, por exemplo, com a Mostra MacaBro na Darkflix e o Cinefantasy na Petra Belas Artes à la Carte. Assim, o público toma contato com os catálogos desses serviços de maneira indireta (até porque nem sempre o acesso aos festivais depende do pagamento de assinaturas ou de valores altos para o cadastro) e pode visualizar opções diversas daquelas já oferecidas por Netflix, Amazon Prime Video, Disney Plus, etc. Por que, então, não imaginar indivíduos se interessando em assinar streamings que fornecem filmes de diferentes épocas, estilos e nacionalidades a partir desse aperitivo?
O desdobramento positivo mais evidente da multiplicação do acesso a festivais é a chance de ver e conhecer cinematografias, realizadores, contextos artísticos e propostas diversas. Infelizmente, muitas obras disponibilizadas por mostras não encontram distribuidoras que as levem para o lançamento do circuito comercial, gerando um sério problema: títulos interessantíssimos são relegados a um limbo inalcançável para amplas audiências que nem sempre conseguiam acompanhar eventos presenciais. Com os festivais ocorridos em plataformas virtuais, podemos talvez amenizar a situação, garantindo um contato maior com produções distintas do modelo hollywoodiano já tão disseminado e possibilitando aos realizadores um número mais elevado de espectadores. Em algumas ocasiões, podemos também acessar mostras especiais com filmes antigos difíceis de encontrar.
Por conta disso, os benefícios sociais proporcionados pela arte podem se intensificar ainda mais. Ter outros ambientes de difusão dos trabalhos de atores, atrizes, diretores, diretoras e outros tantos profissionais amplia a disseminação de narrativas, vozes, identidades, anseios, projetos e visões de mundo, que ultrapassam os discursos hegemônicos que se impuseram historicamente. É, portanto, por essas direções que a população negra, mulheres e a comunidade LGBTQIA+ se expressam destacando outras representações e afirmando suas lutas no espaço público. A título de exemplo, podemos citar e aguardar pela próxima edição do Cinefantasy, a ser realizada em setembro de 2021 tendo pela primeira vez a curadoria e júri de um festival de cinema fantástico compostos apenas por mulheres cis e trans.
Refletir sobre os festivais em seus mais variados formatos nos conduz necessariamente a alertar para aqueles em curso no momento. No contexto em que esse texto é escrito (a terceira semana de julho de 2021), dois festivais estão acontecendo com características próprias: o Festival Ecrã, que ressalta a riqueza da linguagem audiovisual para além das versões mais tradicionais; e o Festival do Rio, em parceria com o Telecine, oferece um retrato múltiplo do cinema mundial com obras dos EUA, Dinamarca, Rússia, França, China, Costa do Marfim, Arábia Saudita, entre outros países. Enquanto isso, o Festival de Cannes retomou as atividades presenciais cautelosamente e anunciou recentemente os vencedores e vencedoras das premiações – com destaque para a primeira vez em que uma diretora recebeu o prêmio principal sem dividi-lo com outro realizador, a partir da vitória de Julia Ducorneau com “Titane“). Se nosso país ainda não pode voltar a esse cenário, ao menos o festival francês pode ser nosso horizonte de expectativas e desejos para nossa própria realidade, torcendo para que a espera pelos eventos presenciais não precise continuar tão longa.
Mesmo que nosso desejo seja pelo retorno dos festivais presenciais (e isso irá acontecer em algum momento), será possível imaginar o formato virtual sendo abandonado completamente? Como qualquer exercício de projeção é complicado em si mesmo, o futuro é o mais habilitado a responder a essa pergunta. Quem sabe podemos supor, com os indícios que temos hoje, que o sucesso dos eventos online de cinema e o alcance maior que muitos filmes podem ter sugerem uma resposta intermediária. Talvez algum esquema híbrido que combine o melhor das atividades presenciais e as possibilidades das ferramentas digitais de forma equilibrada. Quem sabe assim nossas vidas também se aproximem de um equilíbrio sadio entre o real e o virtual?
