O cinema argentino se debruça constantemente sobre a ditadura civil-militar iniciada em 24 de março de 1976, após a deposição do governo constitucional de Isabela Perón. Muitos são os filmes que abordam o período em questão à luz de movimentos de oposição ao regime autoritário e das ações repressivas dos militares. São eles, por exemplo, “La noche de los lápices”, de Hector Oliveira de 1986, que conta a violenta repressão a estudantes de ensino médio da cidade de La Plata; “Made in Argentina”, de Juan Jose Jusid de 1987, que conta o retorno de exilados políticos ao país tendo que lidar com as memórias traumáticas; “Garagem Olimpo”, de Marco Becáis de 1999, que conta sobre um centro clandestino de repressão em Buenos Aires; e “Crônica de uma fuga”, de Israel Adrian Caetano de 2005, que conta a história real da fuga de presos políticos da ditadura argentina. Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Fazendo uma varredura maior sobre as produções argentinas conforme o tempo avança, é possível também perceber que o interesse por essa temática histórica leva diferentes realizadores e realizadoras a contar diferentes histórias. Em “A história oficial”, de Luis Puenzo de 1985, uma professora de História abandona a alienação e toma consciência da situação do país e da própria família durante a ditadura; em “Iluminados por el fuego”, de Tristan Bauer de 2005, há a lembrança de ex-soldados a respeito da participação que tiveram na Guerra das Malvinas contra a Inglaterra; em “Kóblic”, de Sebastián Borensztein de 2016, um ex-capitão é atormentado pelas recordações do tempo em que pilotava os “voos da morte” para eliminação de opositores; e em “Los rubios”, de Albertina Carri de 2003, a diretora tenta reconstruir as fraturas de suas memórias e do tempo em que os pais viveram na clandestinidade.
Em comum aos filmes citados no parágrafo anterior, está o esforço de buscar outros pontos de vista para as representações cinematográfica da ditadura civil-militar. Podem ser tanto agentes da repressão, que se envolveram de formas variadas com o autoritarismo político vigente (militares na guerra contra a Inglaterra ou soldados inseridos no combate aos “subversivos”), quanto figuras alheias aos conflitos sociais daquela conjuntura, que apenas viviam seus cotidianos comuns sem envolvimentos diretos com a oposição ou o colaboracionismo ao regime (uma professora do ensino básico ou uma jovem ainda não envolvida em política). Assim, a arte pode contemplar sujeitos históricos mais à direita, à esquerda e pertencentes a uma “zona cinzenta”, o que demonstra a complexidade das relações sociais e das disputas políticas.
No entanto, esse fenômeno não se restringe à Argentina, já que os demais países da América do Sul também enfocaram suas respectivas ditaduras civis-militares sob diferentes abordagens e perspectivas. O Brasil produziu, por exemplo, “Terra em transe”, de Glauber Rocha de 1967, “Para Frente Brasil”, de Roberto Farias de 1982, “Que bom te ver viva”, de Lúcia Murat de 1989, “Ação entre amigos” de Beto Brant de 1998, e “O ano em que meus pais saíram de férias”, de Cao Hamburger de 2006; o Chile produziu, por exemplo, “No” de Pablo Larrain de 2012, “Violeta foi para o Céu” (coprodução com Argentina e Brasil), de Ángel Parra de 2011, e “Salvador Allende”, de Patricio Guzmán de 2004; e o Uruguai produziu, por exemplo, “Uma noite de 12 anos”, de Álvaro Brechner de 2018.
Ainda assim, é instigante traçar um paralelo específico entre o cinema argentino de temática histórica a respeito da ditadura e a trajetória desse país desde a redemocratização em 1983. Não se trata de defender a tese simplista de que a arte meramente reflete o que acontece na sociedade, mas adotar a perspectiva de que os filmes ajudam a construir/reforçar/difundir visões, identidades e culturas políticas. Em especial, porque a Argentina possui um processo muito particular de enfrentamento com o regime ditatorial e de compreensão dos deveres históricos de sua democracia em relação ao passado recente. A começar pela forma como se deu a justiça de transição no governo de Raúl Alfonsín entre 1983 e 1989, julgando a junta militar e organizando uma Comissão da Verdade capaz de registrar 9000 casos de pessoas desaparecidas e assassinadas pela ditadura1
Isso não quer dizer que o processo de revelação da verdade sobre crimes passados, processo jurídico de violadores dos direitos humanos, reforma de instituições políticas e reparação das vítimas na Argentina não apresentou recuos, contradições e obstáculos. No governo de Carlos Menem, foram publicados decretos (as leis de Ponto Final e Obediência Devida, conhecidas “leis de impunidade”), entre 1989 e 1990, que concederam indultos a cerca de 1200 pessoas relacionadas à violação dos direitos humanos. Essa situação foi alterada no governo de Nestor Kirchner em 2003, após uma série de lutas de movimentos sociais (como as Mães da Praça de Maio), quando as leis foram declaradas nulas e os indultos inconstitucionais2
Considerando-se o panorama histórico da Argentina da década de 1980 até os anos 2000, podemos perceber como o país não se escondeu da tarefa histórica de lidar com as mazelas de seu passado nem do compromisso de pensar em uma democracia sustentada em valores realmente democráticos. Nossos vizinhos sul-americanos não recaíram no erro que cometemos ao realizarmos um processo de abertura política “lenta, gradual e segura”, baseada em uma Lei da Anistia da impunidade, na falta de um discurso público de reconhecimento das violações aos direitos humanos e na responsabilização dos civis e militares envolvidos com a repressão. Como um exemplo bastante representativo dessa diferença, está o alcance limitado da Comissão da Verdade realizada no Brasil entre 2011 e 2014, responsável por indicar uma série de recomendações não concretizadas (como o reconhecimento de culpa pelas Forças Armadas e a proibição de eventos comemorativos ao golpe civil-militar de 1964)3.
A postura da Argentina dissemina uma percepção muito necessária de que uma ditadura não provoca efeitos apenas passageiros enquanto ela dura e sobre um número restrito de indivíduos. E o cinema desse país regularmente traduz essa ideia visualmente, através de histórias e abordagens que demonstrem como o autoritarismo afeta o cotidiano, a vida comum, figuras diversas sequer cogitadas e sentimentos tão próximos de nós. Nesse sentido, mergulhar em “Infância clandestina”, dirigido por Benjamín Avila e lançado comercialmente em 2011, é uma experiência sensorial, reflexiva e histórica rica sob muitos aspectos.
O ponto de partida é a vida clandestina que uma família é obrigada a ter em 1979 durante a ditadura militar argentina. Os pais Cristina (Natalia Oreiro) e Horacio (César Troncoso), o filho mais velho Juan (Teo Romero), de 11 anos, e a filha mais nova, ainda bebê, voltam a viver juntos na Argentina após um tempo separados. Os pais se dedicam à luta armada contra o regime autoritário com a ajuda do irmão de Horacio, Beto (Ernesto Alterio), enquanto o menino Juan tenta viver da maneira mais comum possível a pré-adolescência. Entretanto, a militância política da família e os riscos da perseguição do governo retiram o garoto de qualquer possibilidade de uma vida natural aos seus 11 anos de idade.
As semelhanças com “O ano em que meus país saíram de férias” são significativas, porém a produção argentina trabalha a mise-en-scène de forma ainda mais expressiva, propondo analisar o cotidiano comum daqueles que não se envolviam na política e como a vida trivial corria apesar do autoritarismo existente. Trata-se de uma articulação entre o olhar sobre a realidade prosaica e sobre as controvérsias de uma polarização ideológica violenta.
A narrativa acompanha o olhar inocente de Juan, imerso em um cenário tão complexo e incompreensível que suas experiências são incapazes de explicar as situações e as tensões diariamente experimentadas por ele. O protagonista (batizado em homenagem a Juan Perón, ex-presidente argentino), após alguns anos de exílio no Brasil separado dos pais, exilados em Cuba, se reencontram. Em sua nova “vida”, ele é obrigado a trocar de nome para Ernesto (em referência a Che Guevara) e se adaptar ao novo colégio sem que chame atenção para as atividades clandestinas de Cristina, Horacio e Beto.
O cotidiano de Ernesto é aquele vivido por todo menino branco de classe média: vai para um novo colégio, conhece novos amigos, se diverte com eles e também conversa sobre as meninas mais bonitas; começa a ter as primeiras paixões ao se interessar por María (Violeta Palukas); e sente as primeiras mudanças naturais de um corpo adolescente. A dinâmica pueril de amadurecimento pessoal não está apartada dos fatos perigosos e incompatíveis com a criação de um jovem, presentes na realidade da sua família. Ele precisa mudar de nome e memorizar uma vida forjada para si que convença a todos, inclusive com uma nova data de aniversário; se recusa a participar da cerimônia de hasteamento da bandeira nacional por ser aquela usada pelos militares com o símbolo do Sol, que significa guerra; assiste a uma aula de História que ensina a colonização espanhola da América por um viés eurocêntrico; e se relaciona com María apesar dos alertas dos pais para não chamar atenção para si mesmo.
Quando a trama se passa em sua casa, há uma proximidade ainda maior com os riscos proporcionados pelas atividades da família. O telefone não pode ser usado, pois pode estar grampeado; na cena em que conversa com o pai deitado na cama existe um revólver entre eles; guerrilheiros membros da mesma organização revolucionária frequentam a residência regularmente; um esconderijo é feito como forma de proteção aos filhos em caso de alguma ameaça. As sequências e os recursos cênicos de cada uma dessas ocasiões são reveladores de como a violência é algo distorcidamente natural na infância de Ernesto, assim como a ditadura é percebida pelo olhar inocente de quem não poderia assimilar completamente a conjuntura do país.
Excetuando-se as cartelas informativas na abertura, responsáveis por situar a história após a implantação da ditadura e os confrontos entre forças peronistas e paramilitares, outros dados do contexto são apresentados pelo olhar de Ernesto. A sociabilidade e os objetivos da oposição armada são mostrados apenas pelo que o protagonista ouve e presencia; o destino trágico que se aproxima das personagens é antecipado pelo diálogo entre os pais e a avó, escutado por ele; os documentos da organização revolucionária Montoneros são vistos rapidamente somente quando queimados; e a violência do Estado é apresentada pela TV e por relatos ouvidos dos guerrilheiros.
Os dois mundos (o juvenil típico de um menino de onze anos e o arriscado correspondente aos embates contra o governo) não custam a se entrelaçar de modo ainda mais contundente. Alguns elementos são intercalados muito próximos dentro da mesma cena, como o momento em que Ernesto ajuda os revolucionário a empacotarem seus materiais e, em seguida, cede à puberdade e olha os seios de uma das mulheres; duas cenas são encadeadas sutilmente por um raccord sonoro para transitar dos aplausos dos guerrilheiros a uma música cantada por eles para os aplausos dos alunos a uma apresentação de ginástica na escola; e um corte seco passa da conversa entre mãe e filho sobre amor em um piquenique para a chegada do tio baleado em uma ação da organização. Tais decisões estilísticas mostram como o entrecruzamento entre as duas porções da vida de Ernesto pode ser pouco perceptível à primeira vista ou de um impacto flagrante.
O olhar específico do protagonista sobre sua realidade é também evidenciado por escolhas da direção. Muitos são os closes que destacam os olhos da personagem, em especial, quando observa as novidades em torno de seu regresso à Argentina; sente o júbilo e o encantamento oriundos da relação de aprendizado com o tio e de sua paixão por María; e vivencia a tristeza e a desorientação causadas pela violência praticada contra sua família. Por vezes, a câmera também assume o ponto de vista subjetivo de Ernesto, tornando o espectador cúmplice daquilo que o personagem vê e construindo planos nos quais o menino vislumbra a movimentação dos guerrilheiros ou das forças policiais pela fresta de uma porta ou por buracos do esconderijo. Ainda há em outra sequência absolutamente desesperançosa, uma sucessão de flashes de planos entrecortados por velozes fade-outs que representam o elevado batimento cardíaco e o frenético piscar de olhos da personagem.
O universo próprio criado por Benjamín Avila reforça a importância do olhar não apenas pelos enquadramentos de sua câmera, mas também por símbolos estabelecidos pela narrativa. Duas músicas cantadas pela organização revolucionária dos pais e pelos colegas de escola cumprem essa função, trazendo significados objetivos ou poéticos, a depender da ocasião em que são ouvidas. A primeira canção retrata, inicialmente, a interação e os laços de sociabilidade entre os militantes, que ultrapassam a união por um objetivo político comum; porém, pode ser ampliada para um sentido mais lírico quando dois de seus versos são entoados em referência a Ernesto (a câmera o enquadra sozinho no plano para indicar sua intenção), sendo aqueles que falam em “olhos bonitos” e no “desejo de esperança que está por vir no futuro”. A segunda canção, tocada no primeiro ato, seria apenas uma demonstração de diversão e companheirismo dos amigos do colégio; mas, quando reaparece no terceiro ato se transforma em uma metáfora da situação trágica do menino que não vê expectativas para seu futuro.
A mise-en-scène de valorização do olhar se completa com a fotografia. A iluminação das sequências que retratam sonhos alucinatórios imprime um tom verde onírico para contrastar com o estilo realista dos momentos comuns de seu cotidiano. Além disso, o formato das imagens é alterado nas sequências de maior violência, demonstrando como o garoto tenta compreender a realidade em que está inserido a partir de elementos mais próximos de sua idade e de sua formação: então, quando seus pais trocam tiros com indivíduos desconhecidos na porta de casa, o menino vê esses acontecimentos como se fizessem parte de desenhos de uma revista em quadrinhos e, assim, as cores do filme assumem características de uma HQ; o mesmo recurso se repete quando uma troca de tiros é realizada entre seu tio e as forças paramilitares e quando o garoto é capturado pelo Exército. No instante que precisa convencer agentes de segurança na fronteira entre Brasil e Argentina da história de vida forjada pelos seus pais, recorda-se do que seu pai havia dito sobre Che Guevara se disfarçar com muitas fisionomias diferentes, através de uma imagem que remete a desenhos de criança.
Então, por mais que as outras personagens tenham suas próprias forças dramáticas e variações emocionais, a evolução narrativa que mais se destaca é a de Juan/Ernesto graças à atuação de Teo Romero. Inicialmente, trata-se de uma criança fechada que carrega as dores de criar uma existência nova para si (até no sotaque de algumas palavras em espanhol). Com o passar do tempo, passa por um amadurecimento tão doloroso e sofrido, marcado por tantas tragédias, que ao final da projeção afirma quem realmente é, não se importando com as consequências de seu ato.
Por consequência, as escolhas estéticas que ressaltam o olhar são compatíveis com o universo cinematográfico construído e ao desenvolvimento narrativo da trajetória das personagens. Acompanhamos a história pela perspectiva do menino Ernesto, conhecendo os fatos que vivencia, experimentando os sentimentos correspondentes à faixa etária e presenciando as desventuras e agruras dos pais como participantes da resistência armada contra a ditadura argentina. O ponto de vista vinculado ao seu protagonista tão jovem dialoga intimamente com as possibilidades de contar uma trama pelo cinema, afinal a câmera também possui seu próprio olhar sobre a realidade, não registrando a realidade de maneira neutra, imparcial e em sua totalidade. Mesmo se tratando de uma história baseada em fatos reais de um período recente da Argentina, a câmera estabelece um recorte sobre essa realidade, assim como Ernesto o faz durante sua trajetória individual.
No caso específico de “Infância clandestina”, não se busca representar de modo tradicional a ditadura civil-militar argentina, que se comprometa a trabalhar de maneira clássica o período histórico explicando cada detalhe seu. Seu foco é outro: tentar entender e mostrar como este regime autoritário impacta nas vidas de pessoas que viveram sob tais circunstâncias, através da representação de como seriam seus olhares. Inclusive em vidas tão jovens e nunca merecedoras de enfrentarem tamanhas tragédias em sua formação e crescimento.
Logo, o filme de Benjamín Avila, entre tantos outros produzidos no país, parece representar a compreensão da sociedade argentina em relação às consequências de uma ditadura para sua população. Excetuando-se os sujeitos sociais que concretamente se beneficiaram desse regime (militares, políticos conservadores, setores empresariais…), todos os demais são vítimas das torturas, desaparecimentos, assassinatos e suspensão de direitos individuais e democráticos em alguma medida (embora nem todos tenham feito oposição direta ao governo). Assim, não é de se estranhar que o governo argentino de Alberto Fernandez avalie criar uma lei que criminalize negacionismos em relação à ditadura e a seus crimes; porém, é de se repudiar o fato de o governo brasileiro de Jair Bolsonaro negar os crimes da ditadura brasileira e a enaltecer como responsável por salvar o país de um inexistente perigo comunista4.
Além disso, a diferença entre os países não se encerra na comparação entre os dois governos porque avança também para a sociedade civil em geral. Se os argentinos não comemoram o golpe e a ditadura civil-militar porque consideram essa atitude uma ofensa à história e às vítimas (mesmo aqueles que teoricamente gostariam de comemorar, não se sentem compelidos a isso), alguns brasileiros relembram os 21 anos de duração da ditadura brasileira sob a lógica da exaltação de um período que supostamente teria garantido crescimento econômico, segurança pública e defesa contra o comunismo5. Consequentemente, o trabalho de memória da Argentina pressupõe verdade e justiça, não negacionismos, impunidade e sobrevivência de práticas/valores autoritários.
Não por acaso, o cinema e a sociedade argentina têm muito a ensinar à sociedade brasileira.