Pode ser jovem ou experiente. Pode trabalhar no ensino fundamental ou no ensino médio. Todo professor e professora de História já deve ter ouvido ou certamente ainda ouvirá a seguinte pergunta: “Esse ano vamos estudar alguma guerra?”. Como professor de História que sou, já recebi tal indagação algumas vezes e as mais recentes foram justamente nesse ano de 2021. Na primeira ocasião, a resposta foi negativa para uma turma do 7º ano do ensino fundamental; na segunda, positiva para turmas do 8º ano do mesmo segmento. Ah, e uma ressalva a ser feita! Se as guerras em questão não forem durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, elas não contariam na visão de muitos estudantes.Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Se me permitem um breve comentário pessoal dentro da questão, não sou fã de dar aula de Primeira ou Segunda Guerra. Não se pode negar o impacto histórico que os dois eventos geraram nem desconsiderar o papel que tiveram em seus respectivos contextos geopolíticos. Porém, não me atrai a possibilidade de abordar durante algum tempo estratégias militares, batalhas famosas e reviravoltas no rumo de vencedores e derrotados – nunca me pareceu atrativo, na verdade, detalhar o período entre os antecedentes e as consequências dos conflitos, embora não conseguisse precisar exatamente o porquê no passado. Não que mencionar detalhes dos confrontos bélicos seja obrigatório, mas os alunos e as alunas demonstram interesse pelos conflitos armados em si enquanto minha preferência é pelo que vem antes e depois.
Então, voltando aos exemplos do primeiro parágrafo, a turma que recebeu um “Não, esse ano não falaremos sobre as duas guerras mundiais” reagi lamentando a resposta, como se algo tão esperado não fosse se concretizar; já as turmas que receberam um “Sim, a última matéria do ano vai ser Primeira Guerra Mundial” reagiram aprovando a notícia, como se algo há muito desejado enfim acontecesse e precisasse ser comemorado. A maneira como pré-adolescentes e adolescentes se comportam diante da expectativa pelo tema constantemente me inquieta: apesar de não podermos generalizar dizendo que todos eles aguardam ansiosamente por essa aula, por quê um número significativo parece esperar? O que isso pode revelar sobre as representações produzidas e difundidas sobre diferentes guerras? O que isso nos diz como sociedade?
Enquanto refletia sobre tais questionamentos, foi lançado o filme “Quo vadis, Aida?” de 2020 e dirigido por Jasmila Zbanic. A trama se passa durante a Guerra da Bósnia nos anos 1990, abordando o massacre da cidade de Srebenica quando mais de 8 mil bósnios muçulmanos foram assassinados pelo exército da Sérvia1. Nas campanhas de divulgação da obra, a diretora declarou como é importante buscar narrativas que mostrem o que se oculta na história das guerras, ou seja, não se limitem a falar de liberdade, democracia e justiça e também abordem a estrutura patriarcal e burocrática dos conflitos, o sofrimento de milhares de pessoas e o enriquecimento de um pequeno grupo privilegiado2. Portanto, ela destaca o valor de outras perspectivas que, por exemplo, não glorifiquem a violência, algo feito em seu próprio filme ao direcionar o protagonismo para a luta da tradutora da ONU Aida pela sobrevivência de sua família.
A leitura de Jasmila Zbanic pode ser uma hipótese explicativa para a expectativa dos jovens em relação ao imaginário da guerra, afinal as produções artísticas são narrativas por excelência para começar a formar visões e entendimentos sob diferentes temas. Como os estudantes estão na faixa etária entre 11, 12, 13 e 14 anos, o contato com eventos históricos pode se iniciar fora da sala de aula através, principalmente, de séries, jogos de videogame e filmes. Melhor dizendo, será mesmo que somente os adolescentes se relacionam com o tema guerra em conteúdos sem pressupostos pedagógicos? Como não considerar que todos nós somos cercados por manifestações culturais que representam diversos embates militares? Por conta disso, podemos refletir a respeito das representações que mais circulam por meios ou plataformas de maior acesso popular, questionando quais efeitos desencadeiam em nós e até que ponto narrativas plurais se disseminam.
Como nosso universo preferencial aqui é o cinema, vamos nos concentrar nas representações fílmicas de maior alcance no país, isto é, aquelas construídas em Hollywood. Há títulos capazes de se encaixar no que Jasmila Zbanic qualifica como glorificação da violência na guerra, por exemplo, ao criar narrativas que parecem vibrar com acontecimentos tão atrozes e não repudiar a brutalidade dos campos de batalha – caso de “Fomos heróis” de Mel Gibson, que também retrata a participação dos EUA na Guerra do Vietnã de forma problemática, como se os soldados estadunidenses fossem heróis inocentes na luta pela liberdade sem envolvimento nas atrocidades cometidas contra mulheres e crianças. Mesmo os filmes que se pretendem antibelicistas podem atingir o efeito contrário, quando tornam os conflitos um espetáculo técnico a ser contemplado e não sentido como algo assustador – caso de “1917” de Sam Mendes, que possui uma estrutura gamificada na qual fases e missões devem ser cumpridas (sob a ilusão do plano-sequência) enquanto a dimensão humana não passa de coadjuvante.
Pensando na perspectiva de Jasmila Zbanic e em exemplos para embasá-la, passei a nomear de maneira mais específica meu incômodo com certo “fascínio” pela guerra qualquer que fosse a ocasião. Em muitos momentos, a violência dos embates é espetacularizada pela abordagem visual (não como uma eventual crítica a quem se beneficia dela), o que pasteuriza e amortece o impacto das milhões de mortes causadas. Mesmo as cenas que evocam alguma emoção, elas não escapam dos clichês que drenam um vínculo emocional mais significativo e insistem nas fórmulas desgastadas dos sacrifício idealizado e do soldado romântico morto após contar seus planos futuros com a mulher amada. Se somos bombardeados por essas imagens e por sentimentos formulaicos na arte, como sentir de fato o impacto da violência sem menosprezar a brutalidade do que ela representa? Considerando-se essa questão, buscar outras narrativas ganha um valor adicional: não tratar as mortes como simples números ou apagamento de figuras sem rosto, vida e história.
Filmes de guerra, assim como aulas de guerra, até então não me atraíam. Até então, porque ainda não havia assistido a “Vá e veja“, filme soviético de 1985 dirigido por Elem Klimov. A trama se situa na Bielorússia em 1943 durante a invasão e ocupação do país pelas tropas nazistas alemães e acompanha a jornada do jovem camponês Florya. Ele é cooptado por guerrilheiros antinazistas e levado para enfrentar os inimigos, mas é deixado para trás no momento em que o grupo partia em uma missão. Decide voltar para o seu vilarejo em busca da família, porém o que encontra é um massacre: o ambiente desolador, corpos espalhados por todo canto e sobreviventes desesperados se esforçando para não se tornarem novas vítimas3. Ao longo de suas mais de duas horas de duração, experimentei sensações duras, aflitivas e necessárias para não se espetacularizar o que acontece no front, que somente podem ser compartilhadas com alguns spoilers.
Pode ser inesperado para alguns espectadores a indicação de que um filme de temática histórica tem como mérito a experiência emocional que propõe. Isso porque se convencionou esperar que tais produções reconstruam o passado de modo verossímil e apresentem esse período dentro de determinadas características. Apesar das expectativas consolidadas, alguns títulos buscam outros rumos e efeitos, como é o caso de “Vá e veja” que investe na imersão sensorial de estar mergulhado em tantos conflitos. As discussões temáticas podem girar em torno de questões históricas poderosas, como a ideologia ariana do nazismo, o antissemitismo, o anticomunismo e a resistência antifascista, porém não são elementos centrais da narrativa. A ideia predominante é acessar a Segunda Guerra Mundial pelas sensações de estar em uma guerra permanente.
O estado de guerra permanente se inicia com a violência do conflito invadindo e tomando conta do cotidiano do vilarejo e da família de Florya. Na sequência de abertura, o protagonista e um colega procuram uma arma soterrada na areia porque encontrá-la significaria poder entrar no exército antifascista – é um início impactante por mostrar dois jovens tão próximos da violência e da morte e encenar a procurar como uma brincadeira inocente. Além disso, é tocante observar o contraste entre o sorriso de Florya após a chegada de soldados à sua casa e a fisionomia de desespero da mãe dele ao tentar impedir a partida do filho temendo o futuro da família.
Quando o jovem entra no exército, o estado de guerra permanente prossegue ao demonstrar que aquele contexto não permite momentos ternos por muito tempo. As interações de Florya e Glasha (a jovem que conhece no acampamento militar) podem começar delicadas e gentis graças a um beijo, às conversas sinceras e à diversão de uma dança na chuva, mas os instantes de alívio são interrompidos pela chegada da guerra que desestabiliza as possibilidades de uma vida comum. Assim, a ternura é bloqueada pela postura belicista de Florya de querer se concentrar somente na superação do inimigo e pela indignação do adolescente de ser deixado de fora de uma missão, além dos ataques surpresas dos alemães sobre o acampamento.
Se não há chances concretas de fugir de um cenário tomado pela guerra, a tensão é constante e o perigo está mais próximo do que parece. Essas sensações vêm do desenho sonoro que traz ruídos inesperados de tiros se aproximando rapidamente, como alertas de que a segurança é ilusória e os nazistas podem estar à espreita organizando um ataque. É o que ocorre quando Florya e Glasha dançam na chuva e são alvejados de surpresa e quando o protagonista busca alimentos com outros homens para ajudar os habitantes de seu vilarejo até serem atacados em uma situação vulnerável. A narrativa, então, proporciona várias passagens que aterrorizam as personagens quando algum som é ouvido ao longe e remete às explosões de tiros.
Além de evocar a tensão que anuncia o perigo iminente, o design sonoro também oferece uma porta de entrada caótica e desesperadora para a subjetividade de Florya. Após explosões ao seu redor, ele fica surdo e apenas escuta aquela típica frequência sonora de filmes guerras, ampliada pela confusão de ruídos intensos e sem nitidez oriundos do que acontece no ambiente. Na volta para seu vilarejo, o choque e a angústia de presenciar as vítimas das tropas nazistas é representado pela mistura de sons que sai da mente do garoto (choros de crianças, tiros distantes, gritos furiosos e outros ruídos incompreensíveis). Ainda há no terceiro ato o cruel ataque alemão a uma comunidade, que expõe o absurdo do massacre na mistura de sons vindos das armas, do crepitar do fogo, de gritos de dor dos moradores, de gritos de euforia dos nazistas e dos latidos de cães.
Confesso que a angústia daquele contexto levou algum tempo para me atingir, mas quando aconteceu não havia mais caminho de volta. E isso coincidiu com a passagem do primeiro para o segundo ato, quando as personagens não têm mais um segundo sequer de alívio e acabam entrando em uma montanha russa caótica e violenta de acontecimentos cada vez mais desumanos. Florya e Glasha até tentam se alimentar quando retornam ao vilarejo, mas a realidade invade a aparente tranquilidade e revela um amontado de corpos atrás da casa do rapaz. Eles procuram a mãe e as irmãs de Florya por um pântano devastado e próximo do local onde mais vítimas estão desmembradas. A busca de alimentos para os sobreviventes é comprometida pela investida surpresa de alemães que atacam qualquer ser vivo colocado na mira da arma.
Como é uma jornada de dor, sofrimento e desespero, Florya passa por um arco de deterioração física e psicológica destruidora. Antes da guerra, era um jovem loiro, saudável e na flor da adolescência; depois da entrada no exército, ele se tornou uma figura arrasada com uma aparência esgotada, o rosto enrugado e o cabelo grisalho – comparando como a personagem era e o que se tornou ao longo da narrativa, mal acreditamos que ainda é um adolescente que não viveu tantos anos de sua vida. Consequentemente, é impossível se manter indiferente à entrega física do ator Alexei Jewgenjewits Krawtschencko e aos closes feitos por Elem Kimov sobre um rosto transformado pela crueldade da Segunda Guerra Mundial – histórias sobre a perda precoce da inocência já foram contadas, mas dificilmente com uma imagem tão simbólica quanto o olhar destruído de Florya.
E se indiferença não é o sentimento que pode descrever as reações diante da sucessão de fatos, é porque o estado de guerra permanente transborda os limites da trama e impacta a experiência sensorial dos espectadores através de várias estratégias. Existe um efeito de realidade no uso das munições reais que sobrevoam as personagens e da iluminação natural para as cenas sombrias que são filmadas dentro das florestas ou para as cenas mais calorosas que são registradas durante o arco-íris formado em volta de Florya e Glasha. Há a sensação de que fazemos parte da ação, quando os planos acompanhando certas personagens pelas costas são enquadrados com a câmera na mão, planos subjetivos fornecem a perspectiva de alguma personagem para a cena (por exemplo, Florya andando entre os moradores de seu vilarejo após retornar) ou quando personagens são dispostas no espaço como se observassem ou falassem diretamente com o espectador.
Conforme a narrativa avança, quase podemos experimentar fisicamente o desespero sentido pelas personagens. O efeito se multiplica ainda mais se considerarmos que os eventos retratados não são fruto apenas da ficção, que os fatos ficcionais se misturam aos fatos reais. Isso porque a invasão alemã à Bielorrússia foi devastadora em muitos sentidos e fez parte da Operação Barbarossa (estratégia militar da Alemanha nazista para invadir e dominar a URSS na Segunda Guerra Mundial)4. Além disso, membros da própria equipe de filmagem têm sua relação pessoal com a guerra: o diretor Elem Klimov nasceu e cresceu em Stalingrado e foi evacuado da cidade quando menino durante a investida alemã; e o corroteirista Ales Adamovich passou por experiência semelhante ao protagonista do filme, por estar na mesma idade da personagem quando lutou ao lado dos familiares na Bielorrússia contra os alemães5.
Já a queima do celeiro no terceiro ato se assemelha à queima de igrejas, por exemplo, na Europa Oriental e à mensagem do epílogo a respeito das 628 aldeias bielorrussas queimadas vitimando seus habitantes. Essa sequência em questão é filmada com planos gerais, planos longos ou planos-sequências que acentuam a destruição e a brutalidade de um caos ininterrupto – a duração dos planos também pode sugerir que a violência da guerra não passa e nenhum corte da câmera poderia passar qualquer alívio). Assim, novamente a construção fílmica encontra os eventos históricos da época para representar como a Bielorrússia sofreu com os ataques alemães, tendo 25% da sua população total vitimada, principalmente civis, de acordo com o historiador Vadim Erlikman6.
Por fim, o estado de guerra permanente transborda a ficção e volta para a História real nos momentos finais, quando Florya vê numa poça d’água um quadro com a imagem de Hitler e atira nele sucessivas vezes. A cada novo tiro, a montagem encadeia imagens arquivo relacionadas ao ditador alemão e ao nazismo que nos fazem voltar no tempo. Fica a impressão de que a narrativa tenta encontrar a origem daquele mal para erradicá-lo e, assim, eliminar todo o sofrimento visto naquela série de acontecimentos. Essa viagem no tempo para mudar o curso da História chega à infância de Hitler. Então, Florya não atira. Ele segue os demais soldados bielorrussos. O pesadelo da guerra não passou completamente. Outras tropas nazistas podem ser encontradas pelo caminho. Será que apenas eliminar uma pessoa (Hitler) seria o suficiente para eliminar toda a brutalidade de uma guerra?
Esse desfecho fez culminar a sensação que passei a ter desde a metade da produção. Aquela ideia de que os filmes de guerra não lidariam com as mortes como se precisaria? Aquela percepção de que tudo seria um espetáculo técnico e as vítimas apenas baixas inevitáveis com as quais pouco haveria para se envolver? “Vá e veja” nega tudo isso, mostrando que, uma vez instaurados os conflitos bélicos, suas consequências se prolongam e afetam milhares de pessoas, participantes ou não das tropas em confronto, por muito tempo. Sabe a sensação de um peso dentro do próprio corpo, quase como um mal-estar provocado por alguma doença? Foi o que comecei a sentir quando Florya retorna ao seu vilarejo e o que se arrastou por mais algumas horas depois de o filme ter terminado. “Fomos heróis” e “1917“? Empalidecem diante de “Vá e veja“.
Ah, o incômodo citado no início do texto sobre a reação dos estudantes em relação a aula sobre guerras! Por mais que obras artísticas de grande consumo possam gerar relações espetacularizadas com a guerra, há outras que rejeitam a glorificação a violência e que, se mais comentadas e difundidas, poderia colaborar para uma recusa da glamourização do belicismo. Paralelamente a isso, as aulas de História também podem apresentar a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial de maneiras mais sensíveis, embora filmes como “Vá e veja” tenham uma classificação indicativa acima da faixa etária de uma turma de 7 ou 8º ano do ensino fundamental. Por que não enfocar nos sentimentos expressos nessas situações extremas de modo a criar empatia e repulsa à violência? Foi um questionamento assim que me me veio ao conversar com uma amiga professora de História, Letícia Barbosa, ao saber que sua aula sobre Primeira Guerra Mundial envolve a abordagem do otimismo pré-guerra (uma crença no progresso constante) e a decepção com a brutalidade dos conflitos (evidenciada, por exemplo, nos depoimentos de soldados nas trincheiras).
Pensando bem, ter outra sensibilidade para lidar com assuntos espinhosos e delicados não precisa ser um guia de referência apenas para a abordagem da guerra. A maneira como tratamos a violência do cotidiano também deveria ser revista, afinal também se pode espetacularizar ou reduzir o impacto das tragédias do dia a dia do Brasil. Logo, podemos rever a necessidade dos programas policiais da televisão aberta que se apoiam no sensacionalismo de uma cobertura midiática; podemos refletir sobre a recente cobertura jornalística do complexo caso Lázaro, questionando os motivos de expressões como serial killer e de especulações delirantes sobre rituais satânicos terem mais espaço na imprensa hegemônica do que o preconceito religioso contra religiões de matriz africana e as práticas coronelistas no campo brasileiro; e também podemos tratar as vítimas do coronavírus como pessoas de carne e osso e não como “CPF cancelados”.