Na segunda-feira, dia 04 de outubro de 2021, houve um “apagão tecnológico” no mundo. Facebook, Instagram e WhatsApp saíram do ar por seis horas. Twitter e TikTok apresentaram instabilidades pontuais. A causa? Problemas na estrutura de coordenação do tráfego entre os centros de dados das redes, levando o Facebook (principal empresa afetada e proprietária da maioria dos aplicativos prejudicados) a correr contra o tempo para retornar ao funcionamento normal. Foram diversas as consequências da pante tecnológica ao longo daquela tarde e início da noite. Sobre o Conflito no Oriente Médio
A narrativa é de autonomia, mas a realidade é de tutela
Pessoas que utilizam esses recursos para trabalhar tiveram suas atividades comprometidas e adiadas. Outras pessoas que criaram laços de profunda dependência pessoal com as tecnologias se sentiram arrancadas de um traço de sua existência. Alguns indivíduos que reconhecem os males do uso descontrolado dos aparatos tecnológicos demonstraram certo alívio com um período de descanso. Empresas variadas sofreram perdas de todo tipo, sendo a mais famosa aquela que fez as ações do Facebook se desvalorizarem em 5% e Mark Zuckerberg perder quase US$ 6 bilhões do seu patrimônio. Qualquer uma dessas consequências sintetiza uma marca de nosso presente: a presença significativa da tecnologia em nossas vidas de tal modo que mal nos imaginamos sem muitos desses apetrechos e plataformas.
O acontecimento reverberou com tamanha intensidade que algumas pessoas nomearam como novo “bug do milênio”. Para aqueles que viveram a passagem de 1999 para 2000, o “bug do milênio” pode ser recordado como um momento na história que despertou a curiosidade de uns ou a aflição de outros. A expectativa do que ocorreria após o dia 31 de dezembro de 1999 tinha relação com as suspeitas de uma possível pane nos sistemas e serviços, pois os computadores da época poderiam não entender a mudança dos códigos binários. Especificamente, depois do código 99 (referente a 1999) viria o código 00, que gerava o medo de as máquinas interpretarem como a chegada do ano 1900 e não 2000.
Este temor não correspondeu a nenhuma grande ruptura como se chegou a imaginar. No entanto, o “bug do milênio” marcou um período específico no contexto cinematográfico. Assim como o mundo questionava se a realidade como nós a conhecíamos estava em risco, muitos filmes em 1999 debatiam o que seria a realidade e o que constituiria nossa identidade. Por mais que a ficção científica e o terror sejam gêneros cinematográficos mais lembrados para tratar de tramas que ultrapassam o racional e o tangível, filmes de ação e drama também levantaram questionamentos sobre o real. Como exemplos, tivemos Matrix, eXistenZ, 13º andar, O sexto sentido, A bruxa de Blair, Clube da luta, Quero ser John Malkovich, De olhos bem fechados, O mundo de Andy, À espera de um milagre, entre outros.
Podem ser muitas as razões ou as possibilidades de explicação para tantos filmes de 1999 questionarem as certezas da realidade. No seu vídeo do canal Entreplanos “1999: Quando o Cinema Quebrou a Realidade”, Max Valarezo reflete sobre a questão e propõe que este cenário poderia ser fruto da entrada crescente de computadores nos ambientes domésticos nos anos 1990, do desenvolvimento de programas de realidade virtual e da tendência de fazer retrospectivas no fim de grandes eras1 Além dessas ideias, podemos também pensar se a própria aproximação do “bug do milênio” não teria contribuído para filmes que reavaliam a realidade.
Quando chegamos ao dia 04 de outubro de 2021, nova pane tecnológica ocorreu. Pode não ter tido a mesma escala que o “bug do milênio”, mas a paralisação do Facebook, do Instagram e do WhatsApp também pode, à sua maneira, evocar certo medo relacionado à tecnologia: o medo de não conseguir viver sem as facilidades e os confortos que esta tecnologia trouxe. Por isso, 2021 remete a 1999. 2021 remete aos filmes de 1999. 2021 remete à sensação já presente em 1999 de que não temos uma relação sadia com os recursos tecnológicos. E esse retorno ao passado pode nos fazer relembrar alguns filmes de 1999, como Clube da luta.
Dentre todas as opções que 1999 oferece, Clube da luta parece sintomático por ser um filme que critica as ilusões de uma sociedade baseada no consumismo e nas aparências do capitalismo. Tendo como base o livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk, o projeto dirigido por David Fincher acompanha a vida do Narrador, um personagem sem nome que sofre de insônia e busca sentido comprando todo tipo de produto. Em dado momento, ele passa por reviravoltas ainda maiores quando conhece Marla Singer (com quem tem um relacionamento incomum) e Tyler Durden (com quem forma um clube clandestino de brigas para outros homens).
Desde os créditos iniciais, o filme sugere que estamos entrando em uma realidade específica ao guiar os espectadores pelas células nervosas de um cérebro. Tal escolha indica que a narrativa irá se passar na cabeça do narrador e acompanhar o fluxo de seus pensamentos, além de também seguir o caminho bioquímico do medo partindo do cérebro e chegando ao suor da pele do protagonista. O personagem está aterrorizado por ter uma arma colocada dentro de sua boca por Tyler Durden.
A fim de compreendermos como tudo conduziu àquela situação, o Narrador nos explica: “De repente eu me toquei de que tudo isso, a arma, as bombas, a revolução, tem tudo a ver com uma garota chamada Marla”. Apesar de não sabermos o que virá pela frente, Marla faz parte o estopim das reviravoltas em sua vida. Após esse pensamento, um corte abrupto e outra narração em voice over nos leva para o início da trama, quando o narrador frequenta um grupo de apoio de quem tem câncer testicular por estar sofrendo de insônia por seis meses.
A caracterização do Narrador vem em seguida como uma pessoa comum e passiva, cuja vida “perfeita” estava ligada ao seu consumismo. Dois monólogos são emblemáticos nesse sentido: “Quando a exploração estelar se concretizar serão as corporações que darão nome a tudo. A esfera estelar IBM. A galáxia Microsoft. O planeta Starbucks” e “Como tantos outros me tornei escravo do consumismo instintivo caseiro… Eu folheava os catálogos e me perguntava: que tipo de porcelana me define como pessoa? Costumávamos ler pornografia. Agora era catálogo de loja.” Enquanto ouvimos isso, a imagem dele aparece sentada no vaso sanitário folheando uma revista de móveis e fazendo um pedido por telefone, ao mesmo tempo em que uma montagem paralela e um plano sequência expõem os produtos comprados.
Podemos refletir como estes questionamentos feitos pelo personagem se encaixam no mundo virtual e se transformam em novas formas de “consumismo”. Ao invés de pensarmos em objetos físicos adquiridos tradicionalmente, não poderíamos estar lidando com preocupações a respeito do número de seguidores em uma rede social? Do número de curtidas de determinada publicação? Das imagens e vídeos pessoais compartilhados para conhecidos ou desconhecidos? Da dependência das novas plataformas digitais para a comunicação com outras pessoas? Da divulgação de nossas informações inconscientemente para diferentes sites após uma compra ou uma publicação? Especificamente na contemporaneidade, nossas existências poderiam estar relacionadas às práticas e atitudes afastadas de uma dimensão necessariamente tangível.
Como o Narrador inicialmente sofre de insônia e fica em um estado letárgico entre estar dormindo e estar acordado, sente-se obrigado a procurar um médico por temer por sua própria vida e querer algum remédio. Diante de sua preocupação excessiva, o médico apenas receitou mais exercícios físicos e disse que a verdadeira dor estava numa terapia em grupo entre homens com câncer testicular numa igreja. É a partir deste momento que o protagonista atravessa uma reviravolta.
A princípio, frequenta somente esse grupo, mas logo se torna viciado em tal atividade e vai aos de tuberculose, anemia, parasitas, demência, apesar de não possuir nenhuma das doenças citadas. O efeito é praticamente instantâneo: encontra a paz e volta a dormir porque, num lugar improvável, recupera os sentimentos e a própria sensação de importância. “Eu encontrei a liberdade na perda de esperança”, “se não dizia nada, as pessoas logo assumiam que era o pior, eles choravam… eu chorava mais. Eu não estava morrendo de verdade. Não era hospedeiro de câncer ou parasita algum. O mundo girava à minha volta”.
A situação aparentemente estável é comprometida com a entrada em cena de Marla Singer. Assim como nosso protagonista, ela frequenta os grupos sem estar realmente doente e isso o afeta intensamente (“Ela é uma mentirosa. Não tinha doença alguma… Marla, a grande turista. Sua mentira refletia a minha. E de repente, não sentia mais nada. Não podia chorar, e mais uma vez, não podia dormir.”). Deduz-se daí que a segurança, a felicidade, a confiança e o prazer experimentados nas sessões eram somente temporários e insuficientes para a vida dele, bastando uma peça fora da engrenagem e do controle para desestabilizar tudo.
Além disso, outra conclusão possível é pensar que o convívio com Marla despertou emoções desconhecidas e fora do padrão imposto pela mídia, pela propaganda e pelo governo à sociedade no qual tudo é previamente colocado em modelos ideais a serem seguidos. Ele não teria tato em lidar com os sentimentos e teria medo de entrar em contato com algo novo, por isso entra em conflito com essa mulher e não nota que, na verdade, começou a desenvolver uma paixão por ela. É mais cômodo se afastar do imprevisível e de emoções que não se controlam.
Independentemente do período e das condições históricas, saber lidar com as emoções sempre é um desafio que exige um aprendizado contínuo. Se considerarmos especificamente nosso mundo contemporâneo, essa questão pode incorporar problemáticas próprias. Quem nunca vivenciou ou presenciou ocasiões em que a internet cria a falsa sensação de que as pessoas que publicam suas fotos ou vídeos de viagens ou de outros momentos divertidos têm vidas perfeitas? Em uma outra dimensão, a ilusão de vida perfeita difundida pelas redes sociais poderia provocar decepções, frustrações, infelicidades e outros sentimentos melancólicos naqueles indivíduos que não têm as mesmas experiências do que foi registrado nas imagens e vídeos.
No filme, a presença desestabilizadora de Marla Singer para o protagonista também pode evocar a ideia de como o universo virtual pode comprometer as relações sociais e a manifestação de emoções fora das plataformas digitais. Isolados e confinados em um ambiente que pode incluir algoritmos frios, ilusões de verdade e falta de uma convivência mais direta, como seria ter uma relação de amizade, amor ou empatia com outra pessoa? Como reconhecer a individualidade do outro de modo respeitoso? Como reconhecer as qualidades e os defeitos de outro indivíduo sem ofensas ou frustrações? Como ser empático com quem não conhecemos e vive em outro contexto?
Os problemas de relacionamento enfrentados pelo Narrador levam a uma crise de identidade. Diversas cenas trazem essa sua condição: após dividir os horários das terapias com Marla e trocar telefones, ela diz “Não tem seu nome! Quem é você? Cornelius? Rupert? Algum desses nomes idiotas que usa?”; o seu pensamento no aeroporto é “Perde uma hora, ganha outra. Esta é sua vida e se desfaz a cada minuto.”; as amizades “porção única” nos aeroportos sem laços mais duradouros; o acordar em diferentes lugares sem recordações; e a primeira aparição definitiva de Tyler Durden ao fundo na escada rolante do aeroporto quando o Narrador se questiona “Se você acorda em horas diferentes, em lugar diferente, será que pode acordar outra pessoa”?
À medida que o Narrador passa mais tempo com Tyler Durden conhecemos mais sobre o homem. Em uma conversa entre os dois em um bar, lamentando ter perdido todas as suas posses, o protagonista enfatiza ainda mais seu perfil com a frase “Estava próximo de me sentir completo” e o de Brad Pitt expõe suas críticas à sociedade de consumo:
“Somos subprodutos de uma obsessão por um estilo de vida. Assassinato, crime, pobreza. Essas coisas não me interessam. O que me interessa são revistas de celebridade, televisão com 500 canais, nomes de uns caras na minha cueca. Viagra. Olestra… Então foda-se seus sofás e acessórios. Eu digo, não queira ser completo. Pare de querer ser perfeito. Vamos nos expandir. Deixa o barco correr…As coisas que você possui acabam possuindo você.”
Se o narrador é questionado sobre quem ele é, nós podemos nos interrogar até que ponto nossas identidades não seriam afetadas pelas interações e mecanismos virtuais. Como lidamos com as interferências das redes sociais em nossas identidades do “mundo real”? Somos o que somos, fazemos e acreditamos fora do mundo tecnológico apenas? Ou os usuários e avatares que criamos moldam outros indivíduos? As plataformas digitais intensificam os dilemas e as contradições entre quem somos e quem projetamos publicamente, ao colocar em questão se nossas publicações e postagens correspondem às nossas personalidades ou às imagens construídas com outras intenções.
O tema se complica quando pensamos em novas implicações trazidas pelos últimos anos para a definição do que é uma identidade. Perfis falsos e contas “robôs” se multiplicam na internet, podendo ser uma estratégia de humor ou uma possibilidade de anonimato. Os usuários que utilizam esse procedimento podem ter objetivos simples e inofensivos, mas também podem ter em mente atitudes perigosas e criminosas, como ameaças, golpes, notícias falsas e manifestações de preconceito. Quais podem ser os significados e os desdobramentos de novas “identidades” criadas em profusão com interesses condenáveis em uma realidade tão fluida e em acelerada transformação.
É a partir do momento em que o Narrador vai morar com Tyler que a violência assume papel preponderante. Os dois na saída do bar brigam, uma briga surpreendente e desajeitada estimulada por Tyler. Novos atos violentos ocorrem durante a formação e a disseminação de clubes da luta por todo o país, regulamentado por oito regras e frequentado por uma grande variedade de homens. Não há concessões em mostrar a brutalidade das lutas, por isso os movimentos da câmera sempre procuram enquadrar o sangue, as lesões e os estragos das agressões; o ponto de vista da câmera ora faz o espectador se sentir como o agressor, ora, como a vítima, ora como uma plateia acompanhando aquele embate. Os efeitos sonoros são duros e secos, dando a impressão de um realismo que provoca o público.
Existem outros instantes em que a violência está presente, mas não através de brigas. Algumas situações e falas são extremas e incomodam, como na cena da queimadura que deixa uma cicatriz na mão do Narrador (já por si só chocante e potencializada pela alternância de cortes rápidos e curtos) e traz o seguinte monólogo de Tyler Durden:
“Nossos pais foram inspiração para Deus. Se eles nos abandonaram, o que isso lhe diz sobre Deus? Escute, tem de considerar a possibilidade de que Deus não goste de você. Nunca lhe quis, e provavelmente te odeia. Não é tão ruim assim, não precisamos dele!… Pare de lutar. Primeiro tem de perder o medo, e saber que um dia, você vai morrer… Apenas depois de perdermos tudo é que estaremos livres…Parabéns. Você está mais próximo do fundo do poço”.
É interessante notar os efeitos simbólicos da encenação direta da violência. Não se trata de infringir dor e sofrimento ao outro, mas sair de um estado anestesiado, de dormência promovido por uma vida “moderna” que valoriza ilusões e aparências do consumismo, a receita padronizada para se tornar bem-sucedido e elementos superficiais em detrimento de uma felicidade legítima ancorada nas relações humanas. Trata-se de voltar a sentir, de ser alguém não em função de bens materiais e posição social, de recuperar a condição humana em sua plenitude de ambições, sonhos, medos e emoções. A violência é o meio, a metáfora que desperta essa catarse, essa epifania.
Vale ressaltar o quanto o Clube da Luta não é sobre bater. É sobre receber e apanhar, assim sendo sacudindo do torpor. Em diferentes sequências, chegamos a essa conclusão: na primeira briga entre o Narrador e Tyler, ouvimos o som de um coração batendo somente após Tyler desferir um golpe no Narrador, ou seja, o impacto e a reação são ao sofrer a agressão; em uma das cenas de brigas no clube, escutamos a voz do Narrador “O clube da luta não era sobre ganhar ou perder. Não era sobre palavras…Depois da luta não havia resultado. Mas nada importava. Depois, nos sentíamos salvos.”; e a lição de casa passada por Tyler que consistia em arrumar briga com um total estranho e perdê-la.
A partir do crescimento do Clube da Luta, as atividades foram se diversificando e ganhando dimensões mais amplas. As missões de vandalismo, desmagnetização de filmes numa locadora, alterações dos cadernos de instruções de emergência nos aviões e falsificação de notícias nos jornais se tornam constantes. Tudo isso desemboca no Projeto Destruição, uma série de ações impactantes pela cidade que chegaram a contar com a ameaça a um político e o plano de explodir os quartéis-generais das grandes companhias de cartão de crédito e o prédio do Sistema de Informações, tendo como objetivo apagar os registros de débito e instaurar um caos completo.
O desfecho do filme guarda mais surpresas. Durante a procura por Tyler, que havia desaparecido misteriosamente após um acidente de carro, o Narrador descobre que ele e Tyler eram a mesma pessoa, ou melhor, o segundo era a criação de sua própria mente. A explicação para tal processo surge em seguida:
“Você queria um jeito de mudar sua vida. Não podia conseguir sozinho. Tudo que quisera ser, este, sou eu. Eu pareço e transo do jeito que quer parecer, e transar. Sou esperto, capaz, e mais importante, eu sou liberado de todas as maneiras que você não é… As pessoas fazem isso todos os dias. Falam consigo mesmos, veem-se, como gostariam de ser. Só não tem coragem de, simplesmente, levar adiante. Você ainda se debate um pouco, é por isso que às vezes você é você. Às vezes, você me assiste. Pouco a pouco, você está se transformado em Tyler Durden.”
Entretanto, o que teria desencadeado esse processo não é explicitamente demonstrado. Cabe ao espectador tentar interpretar tendo por base pistas indiretas. O estado de insônia e passividade diante da opressão do mercado, do consumo e de um tipo de vida sempre regulado por padrões e expectativas socialmente construídas, cujas promessas não são certas nem garantia de felicidade? A dificuldade de manter um relacionamento sadio com Marla Singer em virtude de práticas sociais que distanciam os indivíduos de si mesmos e de suas próprias emoções? A imagem de uma masculinidade agressiva, dominadora e controladora que não se abre para suas emoções e é imposta socialmente por estruturas patriarcais (levando em consideração que apenas homens brigavam nos clubes das lutas)? Podem ser esses fatores ou outros que uma revisita ao filme proporcione.
Um ponto muito importante na revelação final de Tyler Durden é o trecho em que o narrador escuta: “Pouco a pouco, você está se transformando em Tyler Durden.” Então, podemos supor que a “personalidade” Tyler Durden, mesmo “morrendo” ao final do filme, prevalece na disputa pela influência daquele homem. Afinal, no terceiro ato o Narrador deixa seu lado mais violento emergir em uma briga em que deforma o rosto de um dos membros do clube. Além disso, em um dos prédios que poderiam ser destruídos pelo Projeto Destruição, o Narrador e Tyler Durden lutam. Como já sabemos que não são pessoas diferentes, podemos entender a luta como um conflito interno entre duas “personalidades” diferentes. O resultado pode ser considerado a última cena do filme, em que o Narrador de mãos dadas com Marla observa as explosões. Naquele momento, seria impossível revertê-las. Logo, só resta uma opção: contemplá-las como se fosse o ato de admirar o espetáculo produzido por ele.
A paralisação do Facebook, Instagram e WhatsApp em outubro de 2021 pode estimular uma revisita ao filme Clube da Luta. O ano de 1999 não é igual ao de 2021: os contextos se alteraram e os sistemas tecnológicos se aprofundaram ainda mais em nossas vidas, porém em ambos as discussões sobre realidade e identidade se colocam questionando se o que entendemos do mundo seria uma ilusão ou um recorte muito limitado do real. São essas semelhanças que fazem o projeto de David Fincher não ser datado e poder se comunicar com outras épocas, especialmente se atualizarmos a dependência em relação às mercadorias físicas do capitalismo a uma dependência aos programas tecnológicos do capitalismo.
No trabalho, nas relações sociais e até no entretenimento somos colocados diante de múltiplas telas. Cumprimos prazos, atendemos a obrigações, buscamos lazer, tomamos contato com fatos do cotidiano e nos relacionamos com outras pessoas sem desgrudarmos por horas de telas de celular, computador e televisão. Parece haver um mundo paralelo na internet no qual noções tradicionais de realidade e identidade não se aplicariam, pois as aparências dão o tom, as imagens são editadas e manipuladas, informações se perdem e pessoas criam e recriam avatares. Embora possa ser uma realidade com lógica própria, ela está inserida no capitalismo porque lucra com nossa dependência e beneficia grandes empresas a partir de nosso “consumo” virtual.
Se 1999 já abordava dúvidas e reflexões sobre o que é a realidade na mudança de grandes eras, o cinema fez parte desse movimento lançando muitos títulos diversos sobre o tema. Algo similar vem acontecendo nos últimos anos com obras que tratam de nossas relações com as tecnologias no geral e com as redes sociais em particular, como Host, Buscando, Ferrugem, Luna, O Dilema das Redes, Privacidade Hackeada, Rede de Ódio e Amizade Desfeita. Tais exemplos já integram em suas narrativas as controvérsias abertas pelo uso desenfreado de plataformas digitais variadas e sugerem o que ainda pode vir no futuro com próximas produções, principalmente após dois anos de pandemia do coronavírus.
Os anos que estão por vir podem proporcionar mais filmes que trazem em seus temas e em suas estéticas questões contemporâneas sobre a força das tecnologias em nossas vidas. Então, se a conclusão de Clube da Luta traz a música Where’s my mind? da banda Pixies para questionar onde está nossa mente, podemos imaginar o que novos filmes podem propor para nos perguntar onde está nossa realidade.