Uma tradição comum entre cinéfilos e críticos de cinema é fazer e comentar listas de melhores do ano. Com a retomada das salas de cinema e o uso cada vez maior das plataformas de streaming pelos estúdios e empresas cinematográficas, o ano de 2021 pode proporcionar uma série de títulos que caíram no gosto popular e entraram nos top-10’s dos amantes da sétima arte. Filmes como “Duna“, “Matrix Ressurections“, “Ataque dos cães“, “007 – Sem tempo para morrer”, “Homem-Aranha: Sem volta para casa” e “Amor sublime amor” estiveram em muitas listas. Como acontece em qualquer lista, algumas produções tendem a ofuscar outras que são esquecidas ou que não recebem o destaque merecido. Esse problema pode afetar particularmente o cinema brasileiro, ainda desvalorizado por parte da sociedade em geral e do circuito exibidor de grandes salas ao redor do país em particular. Em direção a um conhecimento mais vasto da riqueza da produção cinematográfica brasileira, podemos redirecionar o olhar para os destaques que o Brasil proporcionou e nem sempre figuram nas listas mais difundidas de melhores do ano.
Em meio a tantos títulos de qualidade lançados no país em 2021, podemos citar como exemplo “Cabeça de nêgo“, dirigido por Déo Cardoso. O filme pode ser visto em festivais de cinema no Brasil em 2020, como a Mostra de Tiradentes em Minas Gerais e a Mostra de Gostoso no Ceará. Já em 2021, teve sua estreia nas salas de cinema em outubro e desde novembro está disponível no catálogo da Globoplay. Na trama, acompanhamos o estudante negro Saulo, que participa do grêmio estudantil da escola Major Altair Andrade e se interessa em conhecer a fundo ativistas e pensadores negros. Após um insulto racista, ele reage empurrando o colega de sala agressor. Sem querer ouvir o que aconteceu, o professor expulsa Saulo da sala, mas este se recusa a sair. Nem a insistência do diretor o faz mudar de ideia. Mantendo-se firme, o jovem passa o ocupar o colégio e a denunciar os problemas do lugar. Com o tempo, o que era uma ação individual se transforma em uma mobilização maior de outros estudantes por melhorias na escola. Um aviso importante: para analisarmos o impacto da produção, precisaremos passar por alguns pontos importantes da história que podem ser considerados spoilers.
Nas primeiras sequências, Déo Cardoso (responsável também pelo roteiro) apresenta seu protagonista e algumas ameaças ao seu redor. Primeiramente, vemos um plano estático nas costas de Saulo enquanto ele fixa um cartaz em um muro da cidade. Ficamos curiosos de saber o que diz o cartaz, mas seu corpo oculta boa parte do conteúdo e deixa aparecer apenas alguns detalhes. Conseguimos vislumbrar que se trata de um panfleto com as ideias do grêmio estudantil do qual participa, cujo nome é Grêmio Palmares, em alusão ao Quilombo dos Palmares, principal comunidade de resistência dos africanos escravizados no período colonial do Brasil. No panfleto, é possível também identificar as imagens de Zumbi e Dandara dos Palmares, nomes importantes da luta contra a escravidão1. Em seguida, em um plano-sequência, seguimos Saulo pelas ruas da cidade até chegar à frente da escola; o que começa a criar uma cumplicidade entre ele e os espectadores. Após a abertura, Saulo é ameaçado por Jailton na frente do colégio por tê-lo denunciado por algum crime cometido na região onde vivem. A ameaça continua por ali com Jailton à espera de Saulo passar sozinho.
Dentro do colégio, conhecemos mais um pouco sobre o protagonista. Saulo adora ler e escreve muito bem, sendo até mesmo elogiado pela professora de Português em uma reunião docente. O prazer pela leitura e o engajamento político em lutas raciais e sociais fazem com que se aproxime da professora Elaine (possivelmente de História, mesmo que o roteiro não especifique), com quem pega emprestado um livro sobre os Panteras Negras. O movimento dos Panteras Negras se formou com o objetivo de defender a comunidade afro-americana, combatendo a violência policial na década de 1960 nos EUA até ampliar sua atuação para lutar por um projeto de autogestão social através de uma ideologia revolucionária2. Outra inspiração para o jovem é Angela Davis, filósofa, escritora, professora e ativista estadunidense, que luta pela igualdade racial e de gênero se filiando a movimentos antirracistas, aos Panteras Negras e ao Partido Comunista3. Então, Elaine e Saulo conversam sobre a importância de Angela Davis e o Pantera favorito de cada um.
Antes de chegar ao incidente incitante que move o filme, Déo Cardoso nos faz mergulhar na dinâmica escolar. Alternando o ponto de vista da câmera entre a frente da sala e os fundos entre as carteiras dos estudantes, somos levados a experimentar como seriam as aulas de Português (em que a professora passa um trabalho), e de Inglês (em que o professor anota o conteúdo no quadro). É nessa segunda aula que comportamentos tão clássicos aparecem: um aluno pergunta se é para copiar, a turma do fundo da sala brinca e conversa em voz alta, uma aluna na primeira carteira reclama do barulho, o professor exige, sem sucesso, silêncio, e uma guerra de bolinhas de papel começa. Uma das bolinhas de papel atinge Saulo e ele joga outra no responsável. Nesse instante, tudo acontece: o último rapaz atingido se levanta, vai até a carteira de Saulo e o chama de macaco. A indignação e a revolta fazem Saulo o empurrar, sendo esta a única cena vista pelo professor, que expulsa Saulo da sala. Ele se recusa a sair até quando o diretor tenta levá-lo e a câmera registra os momentos seguintes com a força de um close fixo no rosto do jovem. O movimento dos alunos ao redor fica fora de foco, pois o que interessa é a expressão decidida e revoltada do adolescente sentado em sua cadeira.
O fato é uma demonstração explícita de que muitas escolas não sabem como lidar com o racismo. O professor de Inglês não busca entender o que gerou o empurrão de Saulo e acredita que o ato foi uma simples agressão gratuita. O diretor Gusmão busca levar Saulo para a diretoria para dar uma punição e sua fala insiste que o regimento interno, construído por todos, prevê punições severas para agressões. Porém, seria mesmo um empurrão provocado por um ato discriminatório mais grave que o racismo em si? Faltou esse discernimento a uma escola que traz um emblema militar em seu símbolo e o lema “A disciplina é a fonte para o futuro” no uniforme dos alunos. Daí, surge um paradoxo: um colégio, que deveria prezar por uma educação voltada para o pensamento crítico e para a formação cidadã, abriga casos de preconceito sem agir como deveria. Tal problemática remete a episódios reais em nossa sociedade, como ocorreu em Belo Horizonte em 2021, quando um menino foi vítima de racismo por colegas de classe em um grupo de Whatsapp4.
Como a escola não é um local isolado da sociedade, devemos ter em mente que toda instituição de ensino está sujeita ao racismo estrutural do país. Historicamente, a discriminação racial se manifesta em muitas dimensões da vida social e se infiltra em mentalidades, práticas, estruturas e instituições, desencadeando para a população negra riscos e obstáculos diversos: violência policial, humilhações diárias, diferenças salariais, restrições no mercado de trabalho, menos oportunidades em postos de comando, desigualdades socioeconômicas, entre outros. Em função disso, as escolas brasileiras não são os únicos espaços onde o racismo se evidencia, como a rápida lembrança de casos diversos que acontecem e aconteceram, por exemplo, com um entregador de aplicativos em Goiânia vítima de intolerância; e um homem de 40 anos assassinado por asfixia em um supermercado de Porto Alegre por seguranças5.
Já que Saulo não encontra uma resposta adequada do colégio, ele decide permanecer no local como uma atitude de desobediência civil pacífica. Nem mesmo a chegada de um segurança o faz desistir da decisão de continuar na sala de aula. Os colegas e os funcionários não sabem o que fazer, sendo que a maioria dos estudantes fica preocupada com o fato de Saulo dormir ali e os professores temem impor a saída compulsória do adolescente. Com a chegada da noite, o protagonista precisa lidar com o vigia noturno, encarregado de impedi-lo de transitar pelas dependências da escola e ter contato com o mundo exterior para forçá-lo a abandonar sua resistência. Por isso, enfrenta as dificuldades de não poder ler o livro sobre os Panteras Negras por conta do desligamento da energia elétrica, não conseguir recarregar a bateria do celular, nem poder se alimentar (afinal, os alimentos separados pela mãe são impedidos de chegar até ele). Porém, o que poderia ser entendido como um protesto pelo preconceito sofrido (o que também é) se amplia como uma manifestação por melhorias na educação.
Saulo utiliza o celular para registrar os problemas da escola que afetam todas as pessoas que estudam ou trabalham ali. Ele grava as rachaduras imensas nas salas de aula, a má conservação do banheiro com o vazamento de água, a precariedade da cozinha com alimentos estragados e infestação de ratos e o desperdício de livros didáticos armazenados sem uso no almoxarifado. Além de captar as mazelas do local, disponibiliza vídeos na internet com suas críticas à administração vigente, que possuem um grande número de visualizações e comentários. Nos trechos em que Saulo registra as condições do colégio, Déo Cardoso modifica a composição dos planos e das imagens e incorpora à narrativa o design do quadro de uma câmera de celular, conferindo ao filme uma dinâmica estética próxima às tecnologias atuais. Tais passagens dialogam diretamente com outro tema contemporâneo da sociedade brasileira que movimentou vários segmentos nos últimos anos.
Há aproximadamente seis anos, colégios estaduais e públicos de diversas cidades brasileiras foram ocupados por estudantes mobilizados por reivindicações e lutas em prol de uma educação pública de maior qualidade. Por exemplo, em Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro, os jovens ocuparam as instalações de suas escolas e montaram comissões para reivindicar um conjunto de pontos capazes de melhorar as condições escolares de todos os envolvidos, tais como: a recontratação de funcionários demitidos por cortes de gastos, aumento salarial dos professores, reformas estruturais nas dependências, reformulação do sistema de ensino e gestão escolar mais democrática6. A organização dos estudantes também revela a força do movimento, uma vez que coloca o protagonismo coletivo dos jovens como centro da luta por um entendimento e por um exercício cotidiano das administrações escolares, exercício este que torne os estudantes agentes ativos de transformação educacional. Então, eles se mobilizaram para fazer algumas melhorias materiais possíveis e criar assembleias para definir as pautas e os métodos de ação.
Entender o que levou os estudantes a se manifestarem ocupando essas instituições nas cidades brasileiras requer uma compreensão mais ampla de processos socioeconômicos. A título de indicação do que se passa no sistema escolar, é necessário também pensar em uma escala macro e não somente dentro das realidades específicas de cada escola no país com suas direções, políticas pedagógicas e localidades. Nessa equação, muitas são as variáveis em jogo. Desde o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff, reformas neoliberais e ações contrárias a uma educação crítica e emancipadora foram colocadas em prática ou tentadas. A face mais contemporânea do fenômeno envolve as discussões sobre a reforma do Ensino Médio, mas inclui igualmente o teto de gastos com congelamento de investimentos educacionais, a perseguição a suposta “ideologia de gênero”, o Escola sem Partido e a disseminação de práticas negacionistas7.
O filme faz esse próprio percurso que fizemos brevemente ao partir da insatisfação de Saulo para a dimensão histórica mais ampla de sua luta, articulada com outros movimentos e pessoas de diferentes épocas. É assim que podemos compreender a sequência em que o protagonista está em uma sala de aula, trancado como estratégia de segurança, lendo o livro sobre os Panteras Negras e, enquanto isso, uma sucessão de imagens se projeta no quadro. São imagens de personalidades icônicas nas lutas por igualdade racial, combate ao racismo e conquista de direitos sociais, civis e políticos, como Martin Luther King Jr., Malcolm X, Angela Davis e Nelson Mandela, e de manifestações do movimento negro nos EUA ou de moradores de favela e periferias no Brasil. A construção da sequência fortalece o impacto gerado porque as projeções parecem fazer parte do pensamento de Saulo, sendo referências para se inspirar em sua própria luta.
A articulação entre a realidade de Saulo e de outras pessoas negras engajadas politicamente ainda é representada por outro momento visualmente poderoso. Ele está na sala de aula e uma trilha sonora discreta e intimista acompanha aquele instante. O jovem escreve na carteira e, ao terminar, a câmera registra o que foi escrito como “Amilcar Cabral presente”, como se invocasse a força do revolucionário guineense que participou das independências de Guiné-Bissau e Cabo Verde. A câmera percorre outras carteiras e no tampo de cada uma delas, é possível ler outros nomes na mesma linha. São respectivamente “Abdias presente” – Abdias do Nascimento foi ator, diretor, dramaturgo e militante contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra, sendo responsável pela criação do Teatro Experimental do Negro -, “Lélia Gonzalez presente” – Lélia Gonzalez foi filósofa, antropóloga, professora e ativista ligado ao movimento negro e feminista, sendo pioneira nos estudos sobre cultura negra no Brasil – e “Marielle presente” – Marielle Franco foi socióloga e vereadora pelo PSOL do Rio de Janeiro, sendo identificada com a luta pelos direitos humanos e a construção de coletivos de mulheres, de negros e de moradores de favela, que foi assassinada em 2018. Por sinal, “Marielle presente!” é um grito utilizado por setores de esquerda para valorizar a memória da ativista, preservar suas lutas e exigir o esclarecimento total de seu assassinato.
No roteiro de Déo Cardoso, a escala social dos acontecimentos também cresce para absorver outros indivíduos e grupos envolvidos naquele universo. As atitudes de Saulo levam às reações dos professores e da diretoria. A reunião feita para decidir o destino do adolescente é o momento perfeito para demonstras as posições existentes no grupo: o diretor Gusmão pouco se importa com o aluno (a cada minuto precisa ser lembrado do nome completo dele) e se preocupa com a imagem do colégio diante dos vídeos lançados na internet; uma coordenadora insiste em relatar um “possível comportamento agressivo” vindo de Saulo; e a maioria dos professores enxerga a ocupação como um ato de vandalismo (como Hamilton, que insiste na expulsão por considerá-lo um mal para a escola). Apenas Elaine e a professora de Português sustentam o quanto Saulo é inteligente e o quanto a expulsão de jovens em áreas marginalizadas seria extremamente prejudicial.
Da mesma maneira que muitos professores criminalizam a luta de Saulo, a imprensa hegemônica faz o mesmo. Uma repórter e um cameraman cobrem os eventos na escola Major Altair Andrade pelo jornal Brisa do Mar sob a falsa postura de objetividade, já que ela constrói a notícia segundo seus próprios preconceitos. Ela pergunta a uma das alunas do grêmio estudantil e participante de um coletivo pró-ocupação o que achava de um movimento que fazia as aulas serem interrompidas e a turma ser impedida de estudar; pede ao cameraman para deixar de filmar a mobilização para filmar três alunos que bebiam e usavam drogas; e lê com desdém as reivindicações dos estudantes para concluir o movimento. São três cenas que mostram a grande imprensa sendo contrária às ocupações, por afirmar que seria um modo de deixar os alunos sem aula para apenas se divertirem ou ficarem ociosos, tomando a minoria como maioria e não entendendo a mobilização como uma prática em favor de melhorias na educação daquela instituição.
Fora do ambiente escolar propriamente, existem também as interferências de instâncias políticas que trabalham com políticas educacionais. Em outra reunião para definir os caminhos da questão da ocupação, o secretário de educação e o secretário de infância e adolescência são chamados pelo diretor Gusmão. Eles se posicionam contrários à expulsão porque seria uma medida comprometedora em um ano eleitoral para seus próprios interesses de continuar em seus respectivos cargos ou conseguir postos mais elevados. À medida que a situação se desenrola, o descaso do secretário de educação se evidencia na forma como aparenta “negociar” com Saulo e a “atender” as reivindicações dos alunos. Nesse sentido, a narrativa contrapõe muito bem a condescendência com que ele estende a mão para selar um acordo e a frieza com que chama a polícia para encerrar a ocupação violentamente.
Contudo, a escala mais ampla não engloba somente indivíduos e setores sociais em oposição. Muitos colegas de Saulo se envolvem nos protestos, embora não consigam entrar na escola nem se comunicar tão bem com o amigo. Eles ficam no portão de entrada deliberando os próximos passos da ocupação, debatendo as reivindicações e preparando cartazes com suas ideias e gritos de mobilização. Ao invés de centrar a luta no protagonista ou em alguns líderes específicos do movimento estudantil, o cineasta aborda com destaque a coletividade das ações que os estudantes realizam enquanto grupo e das decisões que formulam em assembleias. Ao direcionar sua câmera para aqueles jovens, Déo Cardoso capta rostos e corpos de negros e negras que demonstram seu descontentamento e suas propostas por uma educação e um mundo melhor. O realizador já comentou em entrevistas que não se trata de valorizar um indivíduo, mas de ressaltar o fenômeno como algo plural e coletivo:
“O filme chega na casa das pessoas mostrando não só a força individual de quem toma uma posição antirracista e antifascista, mas acima de tudo a força coletiva que essa posição fomenta. A todo instante o filme faz pensar: de que lado você está? No plano final do filme, esse questionamento é explícito. O filme mostra que mesmo buscando o diálogo pacífico, se as garras do racismo estrutural violentarem um indivíduo, é o mesmo que violentar todos e todas. Haverá uma reação porque a história da civilização humana é assim. Ao longo da história, todo sistema que excluiu, e oprimiu o excluído, viu, no mínimo, focos de resistência contra-atacarem. Essa é uma das reflexões que o filme traz.”8
Visualmente, Déo Cardoso confere importância significativa aos estudantes organizados e mobilizados na rua em frente ao colégio. Com o agravamento dos conflitos entre os jovens e as forças sociais conservadoras, a energia do movimento de ocupação se intensifica. A noite chega e, com ela, os policiais atendem ao chamado do diretor e dos políticos para cercar o local. É o momento em que os alunos se manifestarem ainda mais intensamente, o que fica evidente na sequência em que os vemos preenchendo todo o quadro e gritando palavras de ordem com seus cartazes em punho e instrumentos musicais a tiracolo. Entre os gritos, começa a canção “Escola de luta“, uma das composições que marcou os movimentos de ocupação em São Paulo em 2015.
Estado veio quente, nós já tá fervendo
Estado veio quente, nós já tá fervendo
Quer desafiar, não tô entendendo
Mexeu com estudante
Vocês vão sair perdendo
Com o avanço da mobilização, Saulo e os demais estudantes chegam ao conjunto de 11 reivindicações do que julgava necessário e urgente para a melhoria da escola. No manifesto, constava uma lista de propostas de diferentes naturezas, cada uma delas tendo sua importância particular, como reformas estruturais nas instalações físicas; aquisição de livros didáticos e de literatura, inclusive de autores indígenas, negros e negras e pessoas LGBTQIA+; projetos de integração da comunidades escolar com a sociedade; participação de estudantes nos planejamentos escolares; a criação de um conselho de combate às diversas formas de violência a partir de educação, arte e cultura; e a mudança do nome do colégio para a de uma poetisa, retirando o antigo nome por ser a de um torturador da ditadura militar. Tais pontos se articulam com debates e lutas muito contemporâneas que ultrapassam as condições materiais das escolas e alcançam temas como representatividade, valorização da arte e da cultura, promoção de olhares e vozes historicamente marginalizados, enfrentamento dos legados autoritários do país e gestão escolar democrática.
Enquanto os estudantes se mobilizam de forma democrática, inclusiva e pacífica, o outro lado da questão não responde do mesmo modo. A pedido do diretor Gusmão e/ou dos secretários presentes na escola, policiais são chamados para teoricamente garantir a segurança. Quando uma policial fala isso por um megafone, a reação irônica dos estudantes revela que, se houvesse segurança, seria apenas para os poderosos, sendo reservada a violência para os manifestantes. Como um prenúncio do que viria mais tarde, a força policial é utilizada para reprimir os protestos e encerrar a ocupação de forma brutal, como já vimos se repetir diversas vezes pelo território brasileiro quando as classes populares tomam o espaço público em busca de direitos. Assim, contraditoriamente, grande parte dos policiais, oriundos das camadas populares, é treinada para servir os interesses dominantes e exercer a violência sob o falso discurso da garantia da ordem.
A construção cênica desses momentos violentos de repressão policial evoca passagens de um filme de terror. O pátio nos fundos da escola é o cenário de demonstração de força e brutalidade entre dois lados desiguais. Policiais acionam as armas. Pessoas fogem desesperadamente. Confrontos acontecem. Jovens são presos, imobilizados e asfixiados. Tudo isso através da câmera na mão, trêmula, instável e oscilante que Déo Cardoso escolhe para filmar essa sequência. Como efeito dessa escolha, a violência se torna ainda mais aterradora e realista. Por vezes, é possível discernir o que acontece. Por vezes, queremos não discernir o que acontece. O fluxo de imagens é intenso, caótico e opressivo. Alguns minutos depois, o ritmo cede. Os espectadores podem achar que a intensidade e a gravidade das imagens podem ser reduzidas. Porém, o plano final traz outra imagem bastante impactante. Outro close de Saulo toma o quadro. A expressão é dura e questionadora. O olhar encontra o público e o desafia a se perguntar o porquê de tudo aquilo. E desafia o público a se questionar o que faria naquela situação.
Trata-se de um final que, indiretamente, até pode servir para a ideia central no início do texto. “Cabeça de nêgo” olha para o espectador e o desafia a repensar suas próprias experiências políticas, sociais, culturais e cinematográficas. Não é proibido colocar em uma lista de melhores do ano as produções mais badaladas e ricas de Hollywood. No entanto, será que um ano é feito apenas pelas produções mais badaladas e ricas de Hollywood? 2021 no cinema brasileiro também não é formado por “Deserto particular“, “Marighella“, “Alvorada“, “Ana. Sem título“, “Selvagem“, “Turma Mônica – Lições“, “7 prisioneiros“, “Rolê: A história dos rolezinhos“, “Medusa” e tantos outros?
Dentro de sua abordagem, “Cabeça de nêgo” é o redirecionamento do nosso olhar para vozes e corpos historicamente oprimidos e marginalizados, que estão em luta constante. No caso específico do lugar de onde parte a obra, o cinema também é uma forma de luta, expressão, reflexão, representação e captação de um momento histórico. E, nesse aspecto em especial, o cinema brasileiro ganha ainda mais força ao demonstrar a riqueza de narrativas e vozes construídas por Grace Passô, André Novais Oliveira, Gabriel Martins Alves, Viviane Ferreira, Glenda Nicácio, Ana Flávia Cavalcanti, Jeferson De, Déo Cardoso e tantos outros e outras.
