Popularmente, convencionou-se dizer que política, futebol e religião não se discutem. Essa tríade é mais comum no Brasil, afinal em muitos países o esporte não tem a mesma força que tem aqui. Ao redor do globo, os outros dois temas são mais sensíveis se considerarmos as tensões ideológicas entre governos, partidos, movimentos e projetos políticos na contemporaneidade, além dos conflitos religiosos existentes já há algum tempo entre islamismo, judaísmo e cristianismo e dos episódios de intolerância religiosa contra, por exemplo, as religiões de matriz africana. Especificamente no cinema, cineastas diversos enfrentaram as polêmicas para expressar suas subjetividades em relação às temáticas que rendem controvérsias, inclusive com abordagens estilísticas provocativas. Nesse texto, vamos especificar a questão da representação religiosa a partir do filme “Benedetta”.
Em geral, as religiões aparecem em dramas ou filmes de terror (obviamente as generalizações são frágeis, logo outros gêneros cinematográficos não podem ser desprezados). Os dramas costumam tratar os dilemas entre indivíduos e princípios de cada religião, como “O Julgamento de Viviane Amsalem” para o judaísmo, “Paradise Now” para o islamismo e “Homens e Deuses” para o cristianismo”. Embora o conflito dramático de muitos desses filmes seja movido por questões religiosas, nem todos subvertem um tratamento moderado e convencional do tema, à exceção, por exemplo, de “A Última Tentação de Cristo”. Já os filmes de terror têm a tendência de, quando criam uma ameaça sobrenatural ou ligada a alguma crença mística, utilizar uma religião pagã ou a iconografia cristã maniqueísta do bem versus o mal e do céu versus o inferno. Para além das recorrências, algumas obras vêm adotando construções, dinâmicas e olhares diferentes para a força social da religião.
De uns tempos para cá, realizadores deixaram de concentrar suas críticas e/ou reflexões sobre setores historicamente marginalizados e direcionaram sua veia criativa para setores dominantes. Assim, o catolicismo – que comparativamente com outras religiões não passou pelo mesmo processo de marginalização e ainda definiu para si um lugar de privilégio com o passar dos séculos – passou a ser alvo do escrutínio mais profundo. Como exemplo, “Saint Maud” foi um filme de terror lançado em 2019 e dirigido por Rose Glass que abordou o fanatismo cristão e uma concepção deturpada de redenção como matérias-primas para o horror. Na trama, a protagonista Maud atravessa uma jornada de deterioração física e mental ao extrapolar o quanto sua fé poderia dar um sentido a sua existência, até chegar a um desfecho chocante pelo contraponto entre delírio e realidade.
Lançado mundialmente em 2021 e no Brasil em 2022, “Benedetta” é mais uma produção na polêmica carreira de Paul Verhoeven marcada por uma inusitada combinação entre ironia, ambiguidade e provocação. Tais marcas já foram mobilizadas com diferentes sentidos, interesses e unidades estilísticas em projetos como “Robocop”, “Showgirls” e “Elle”. Filmando nos EUA ou na França, o diretor holandês já desenvolveu temas como violência urbana, segurança pública, culto ao corpo, vidas baseadas em aparências superficiais e estupro com abordagens que negam escolhas fáceis e previsíveis, sendo, por isso, desencadeadoras em potencial de polêmicas com o público e a crítica. Como não poderia ser diferente, o mais recente trabalho do diretor aposta em imagens e ideias ousadas para dar conta de suas inquietações artísticas com relação aos dogmas católicos e suas contradições.
Ao invés de criar uma narrativa contemporânea ou distópica como já fez anteriormente, Paul Verhoeven volta a um passado distante para contar a história baseada em fatos reais de “Benedetta”, tendo como inspiração o livro “Atos Imodestos” da historiadora Judith C. Brown. No século XVII, Benedetta Carlini ainda criança é levada para os pais para o Convento de Madre de Deus, em Pescia na Itália, para se tornar freira. Dezoito anos depois de sua chegada, ela começa a ser perturbada por visões religiosas, nas quais Jesus aparece para ela, e, depois, eróticas. Quando a jovem Bartolomea entra no convento, as duas mulheres desenvolvem uma relação que se transforma em um romance conturbado e as visões religiosas e eróticas crescem de escala.
O princípio da narrativa já revela que o cineasta está interessado em denunciar mazelas da Igreja Católica no período renascentista, começando daí o tom provocador de sua obra. As críticas são feitas tanto em relação às práticas mundanas quanto aos princípios espirituais da instituição. Na chegada ao convento, Giuliano, pai de Benedetta, precisa convencer a Madre Superiora Felicita a aceitar sua filha através de um pagamento em moedas de ouro e não por seu discurso religioso de que a criança havia sido prometida a Deus desde o nascimento. Felicita chega a dizer que o local “não é casa de caridade” e que “precisa pagar para entrar”. E quando Giuliano questiona a necessidade de aumentar o valor do dote, mas acaba cedendo e estende a mão para um aperto selar o acordo, a Madre Superiora responde que “não estão negociando cavalos”. Em seguida, Benedetta aprende desde cedo, por causa de outra freira, que o corpo deve ser renegado em favor de sua fé, ao ter que se acostumar com uma roupa velha que provoca coceira e ouvir a Irmã dizer que preferiria ter um corpo todo de madeira e não apenas um dos dedos da mão.
Além das críticas à corrupção, aos interesses políticos e à repressão ao corpo, o roteiro de Paul Verhoeven e David Birke constrói uma ambientação histórica que transporta o público para o século XVII e para uma sociedade extremamente religiosa sob os dogmas da Igreja Católica. Para isso, os autores situam ao redor da vila de Pescia a ameaça da peste negra, pandemia que dizimou um terço da população europeia no final do período feudal da Europa ocidental, mas que ainda provocou milhões de morte na Itália do século XVII. Notícias chegavam ao convento do grande número de vítimas que morriam em decorrência do sangramento pelos orifícios corporais, da febre alta, do inchaço dos gânglios, do aparecimento de bulbos e de outros sintomas. Ocasionalmente, a câmera registra diversos cadáveres sendo empilhados a céu aberto pelas ruas e doentes desesperados caminhando por estradas à espera do perdão aos pecados para ir para o céu ou autoflagelando os próprios corpos pela crença na purificação após um castigo divino.
Como se pode observar nas primeiras sequências, a visão de Paul Verhoeven para a dimensão religiosa da vida inclui uma interação dialética entre o sagrado e o profano. Dois momentos são particularmente precisos por alternar entre imagens que devem ser reverenciadas e reviravoltas que são subentendidas como desrespeitosas. Na primeira, a viagem da família de Benedetta para a vila de Pescia começa com o encantamento pela beleza do local e a entrega de uma criança à fé à Virgem Maria, porém é seriamente interrompido com a entrada em cena de saqueadores a cavalo que roubam o cordão da mãe e xingam a Virgem Maria. Na segunda, quando Benedetta está em um dos corredores do convento orando para um busto de Virgem Maria, a imagem em madeira cai sobre a jovem e um seio da Virgem Maria aparece, ao que é tocada por ela.
Sob outro ângulo, a narrativa também acompanha a relação entre as Irmãs Benedetta e Bartolomea. Tendo chegando ao convento para escapar de uma realidade cruel de exploração e violência, Bartolomea não leva muito tempo para desencadear pensamentos e sensações com as quais Benedetta não estava acostumada. Ajudar a recém-chegada a se lavar faz com que veja e toque acidentalmente em partes do corpo nu dela, levá-la às latrinas para fazer suas necessidades biológicas faz com que comecem a sentir uma atração física e comentar sobre a beleza da recém-chegada desencadeia um momento de intimidade quase concretizada. A partir dessas passagens, Bartolomea começa a flertar com Benedetta, dando vazão à sua paixão impulsiva, como quando toca na protagonista por trás durante uma oração no salão principal.
Contrapondo-se a uma relação amorosa que vai de encontro aos ensinamentos cristãos com as quais foi formada, Benedetta tem visões com Jesus Cristo, ora parecendo um sonho, ora parecendo um devaneio. Em tais visões, a protagonista se imagina sendo mulher de Jesus, ouvindo suas palavras carinhosas e desfrutando de uma relação de amor platônico. A princípio, poderiam ser imagens que metaforizassem a abnegação e o compromisso com sua fé por desconsiderar as tentações mundanas e privilegiar a devoção espiritual à divindade. Entretanto, duas sequências assim construídas representam a interdição de uma relação proibida com Bartolomea: após o toque da outra feira no salão principal, a protagonista vê Jesus matando várias cobras que se enrolavam sobre ela (símbolo do pecado original) e após o vislumbre de um seio de uma das freiras, ela vê novamente Jesus, dessa vez um falso Jesus matando os saqueadores e a ferindo em um dos seios (símbolo da repressão sexual relacionada ao que havia acontecido anteriormente).
À medida que o tempo passa, Benedetta e Bartolomea acabam se aproximando e concretizando a atração física que sentiam. Por iniciativa da mais jovem e a princípio com alguma resistência da mais velha, as duas Irmãs trocam carícias, beijos, veem a outra nua e fazem sexo. Nos momentos em que elas mantêm relações sexuais, a narrativa não abre mão de criar longas sequências que mostram a nudez e o prazer carnal que sentem, inclusive voltando a trazer à tona ideias provocadoras com a ressignificação de uma estátua da Virgem Maria como instrumento de prazer. O que poderia soar simplesmente como apelação gratuita, desdobra-se como uma estratégia transgressora para criticar a interdição do prazer, do conhecimento do corpo e dos sentimentos em uma época em que as mulheres deveriam ser subjugadas a uma imagem de castidade e ter seus desejos reprimidos. Além disso, o conservadorismo da Igreja Católica se acentuava ainda mais com relação à homossexualidade, considerada um pecado de promiscuidade e bestialidade, e encontrava eco em uma sociedade em geral que criminalizava comportamentos fora do status quo heteronormativo imposto.
A relação entre as duas personagens é consideravelmente beneficiada pelas performances das atrizes principais. Daphné Patakia poderia dar a Bartolomea uma caracterização simplista e caricatural, porém a intérprete faz sua personagem revelar múltiplas camadas. Ela vai desde a encarnação das violências de gênero que a atingiam no próprio universo familiar, a infantilização de uma jovem ainda carente de uma formação mais ampla que a levasse a poder ter outra vida que não o trabalho sistemático e exploratório de uma camponesa no século XVII (como o fato de aprender a escrever números com a ajuda de Benedetta como uma criança rabiscando sem segurança em uma folha) e o erotismo de quem começa a influenciar a protagonista a dar vazão para seus sentimentos mais profundos. E Virginie Efira faz com que Benedetta seja uma mulher confrontada pelos dilemas internos já na infância, ao ver sua fé perturbada por interesses políticos e princípios questionáveis e estar em conflito permanente quanto à escolha pela devoção a Deus e à atração sentida por Bartolomea. A atriz corporifica em seus pequenos gestos e no desempenho físico a repressão sexual e emocional a que é submetida, pois ela demonstra em várias situações como a protagonista pensa em ceder às tentações, mas algo logo depois a impede.
Não leva tanto tempo para que as visões de Jesus Cristo assumam outras possibilidades expressivas. Em uma noite, enquanto dormia, Benedetta vê Jesus crucificado com as chagas nas mãos e nos pés e com a coroa de espinhos na cabeça, e toca nos machucados após ser chamada por Ele. A partir daí, a própria protagonista começa a ter em seu corpo os ferimentos nos mesmos lugares e a falar como se atendesse a uma vontade divina, sinais de milagres que despertam diferentes reações no convento. Existem aquelas freiras que ficam intimidadas com o ocorrido e levantam a possibilidade de Benedetta ter realmente uma ligação especial com Jesus, e outras que não acreditam nesses episódios por sustentarem que tudo seria uma grande farsa. O próprio filme se torna mais complexo por não escolher nenhum dos dois lados e investir na ambiguidade, assumindo o ponto de vista da protagonista para sugerir a existência de uma intervenção mística e inserindo detalhes capazes de gerar a dúvida se tudo não seria armação de Benedetta.
Paul Verhoeven também explora as visões de Jesus Cristo com toques críticos e provocativos que voltam a caminhar no limiar entre ambiguidade e revelação explícita, entre devoção espiritual e subversão da imagem divina. A construção estética desses momentos pode ter elementos oníricos ou alucinatórios, assim como pode ter uma dinâmica visual que caminha entre o sagrado e o profano. Ali, Jesus Cristo aparece vestindo suas longas vestes brancas e tendo sua aparência física historicamente estabelecida (branco e barbas longas), ao mesmo tempo, que parece um cavaleiro medieval salvando a donzela indefesa. Em outras passagens, a imagem de Jesus crucificado está construída como se convencionou ver em tantos registros, mas por baixo do pano que cobre seus órgãos íntimos (retirado pela protagonista) não há nada, tal qual um símbolo de castidade imposto às freiras – por outro lado, o instante à noite em que Benedetta ouve a palavra de Jesus dizendo que colocaria seu próprio coração no corpo dela carrega uma sensualidade que transborda para Bartolomea dormindo ao lado.
Enquanto a relação entre Benedetta e Jesus Cristo ressalta cada vez mais a ambivalência entre existência ou farsa, os demais personagens e conflitos dramáticos são afetados. O romance com Bartolomea parece se desenvolver, apesar de sutilmente Paul Verhoeven lançar pistas que evidenciam que o relacionamento entre elas parece ser um meio para a protagonista atender seus próprios anseios individuais e nem tanto garantir o prazer da companheira. Em outros núcleos, o convento é abalado pelas disputas políticas com relação ao papel que a Madre Superiora Felicita poderia ter e às influências dos padres da região e do Núncio Alfonso. Como base para tudo isso, as discussões se Benedetta seria uma herege a ser punida ou uma santa a ser cultuada. As controvérsias ganham força devido ao trabalho de Charlotte Rampling como Irmã Felicita, que sai da posição de comando do início da narrativa para um lugar de completa desolação com a aproximação do desfecho. Sabendo que o público poderia ficar numa posição privilegiada se continuasse acompanhando a comunicação entre Benedetta e Jesus, o cineasta decide interromper as visões e deixar cada espectador teorizar por conta própria se a voz grossa que a freira faz e a incorporação de um espírito como demonstra para agir como veículo de Jesus seria falso ou real.
Chegado o terceiro ato, a resolução do núcleo de teor mais político atinge uma escala maior. A sequência em que se decide aplicar uma severa punição a Benedetta é construída através de vários elementos que remetem à história do século XVII na Europa ocidental: o julgamento da freira como seria no Tribunal do Santo Ofício, o uso de torturas para a obtenção de uma confissão, a deturpação do catolicismo como justificativa de uma punição tão violenta, a referência à Joana D’Arc, a vilanização da mulher e da sexualidade à época, a disseminação da peste negra e as disparidades conflituosas entre o poder performático da Igreja e a miséria dos camponeses. Para engrandecer o clímax, Paul Verhoeven filma a situação com uma força dramática que se apoia nas dualidades entre salvação e morte, sacralização e violência, política e religião, crença e farsa que não deixa de ressaltar cada gesto, palavra e resultado ambíguo que explode em cena.
Não é apenas a condição do convento que tem sua conclusão. O relacionamento entre Benedetta e Bartolomea também tem uma conclusão, perpassando diferentes etapas de um romance proibido e interditado. Se, no princípio, uma paixão entre duas mulheres e freiras sofre com a violência velada por não poder se manifestar livremente, com o tempo, a repressão violenta se intensifica sob o discurso religioso da purificação de almas pecaminosas. Traição, tortura, humilhação pública e separação forçada dão o tom da reação de uma sociedade moldada por uma visão de Deus punitivo e por papeis sociais rigidamente marcados. Apesar de já enfrentarem obstáculos suficientes, as duas mulheres precisam equilibrar as diferenças entre si e, principalmente, a complexa personalidade de Benedetta, que carrega conflitos internos em torno da relação com a religião.
A protagonista passa por uma jornada que, por si só, já tem ambiguidades e contradições. Além das dificuldades relativas ao prazer sexual e à homossexualidade na Igreja Católica, o arco de Benedetta contém paralelos com a trajetória de Jesus Cristo no que se refere ao ceticismo quanto ao seu caráter sagrado, à violenta punição imposta e à reviravolta de um desfecho violento. Além dessas similaridades, a freira tem seu amor por Jesus desconstruído pela narrativa, já que cada vez mais o prazer que sente é redirecionado para uma satisfação pessoal com seu corpo (é assim, por exemplo, na cena em que Benedetta e Bartolomea se desentendem quando a primeira prefere se masturbar de frente para o outra em uma postura confrontadora). Podemos assimilar esse desenvolvimento como uma indicação de que a personagem deveria primeiramente cultivar o amor por si mesma e a autoconfiança.
No entanto, Benedetta está em um universo repleto de paradoxos que afeta esse arco. A vila de Pescia e o convento de Madre de Deus são microcosmos da Igreja Católica no século XVII, quando a instituição falava em nome de Deus, mas perseguia seus interesses políticos e econômicos, agia de modo moralmente condenável, mas atacava comportamentos naturais para a existência humana, e impunha uma leitura rígida dos dogmas católicos embora nem todos correspondam às experiências práticas dos indivíduos. Diante de tudo isso, a protagonista não compreende tão bem quem seria nem o estágio da vida onde estaria, o que a leva a se considerar uma figura de adoração sem conseguir mais discernir se o que ocorre com ela seria verdadeiro ou não. E como Paul Verhoeven sabe como quer contar essa história, a narrativa explora as contradições e ambiguidades da fé, dispensando as certezas da ortodoxia incorporando o tema ao seu estilo cinematográfico provocador, questionador e no limiar entre o natural, ao artificial e o imaginário.
