Antes da pandemia, o mercado cinematográfico contava cada vez mais com filmes de super-herói. De um lado, a Marvel Studios desfrutava das glórias comerciais de um universo que sedimentou o nome de diversos heróis na cultura pop e consolidou uma fórmula Marvel de sequências de ação contínuas, cores vibrantes e piadas superficiais. De outro, a DC Comics tentava seguir os mesmos passos para a criação de um universo compartilhado com resultados irregulares e críticas contundentes ao estilo realista/sombrio. As reações a esse cenário foram várias: os nerds vibraram com a adaptação de histórias dos quadrinhos e com os easter eggs, o público em geral se entusiasmava com as características dessas produções, críticos de renome como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Ridley Scott criticaram as histórias de heróis e seu predomínio nos cinemas, e alguns cinéfilos ironizaram com a expressão “filmes de boneco”. Mas, será que os super-heróis e seus filmes se dividiriam sempre entre as abordagens da Marvel e da DC? A trilogia “Corpo fechado“, “Fragmentado” e “Vidro” de M. Night Shyamalan, “Os Incríveis“, “O doutrinador” e “Poder sem limites” mostraram que as possibilidades são múltiplas e para além das convenções mais comerciais.
E as representações do Batman, um dos personagens mais icônicos no universo dos super-heróis, no cinema contemporâneo se encaixariam na tendência atual descrita anteriormente? Considerando que os diretores Tim Burton, Joel Schumacher, Christopher Nolan e Zack Snyder já deram suas visões específicas do homem-morcego, é difícil simplificar tais obras dentro de qualquer modelo único e fechado. A fantasia expressionista de Tim Burton, a afetação camp de Joel Shumacher, a alegoria realista da paranoia pós-11 de setembro de Christopher Nolan e a grandiosidade violenta de Zack Snyder levaram os personagens para rumos imprevisíveis e singulares. Além disso, em maior ou menor grau, todos eles abordaram a natureza não heroica de um vigilante noturno que faz justiça com as próprias mãos devido à corrupção das autoridades políticas, à intensificação do crime organizado e à falência das instituições. Diante de tantas construções já produzidas, como o diretor Matt Reeves poderia criar sua própria versão do personagem e uma narrativa específica em um mundo já tão visitado?
Na versão de 2022, Bruce Wayne (Robert Pattinson) está no segundo ano como protetor noturno de Gotham, gerando medo nos criminosos da cidade. Ele tem como aliados apenas Alfred Pennyworth (Andy Serkis) e o tenente James Gordon (Jeffrey Wright) para enfrentar uma rede corrupta de poder composta por mafiosos, policiais e agentes do alto escalão político e judicial, sob a personificação da vingança com o manto do Batman. Em uma investigação, o homem-morcego e Gordon se deparam com uma série de assassinatos brutais praticada pelo vilão Charada (Paul Dano), que deixa enigmas a serem solucionadas. À medida que o tempo passa, os quebra-cabeças revelam a corrupção entre figuras importantes do local, a violência da máfia e segredos obscuros da família Wayne. Então, nesse jogo de gato e rato, a decadência de Gotham pode sofrer uma guinada em direção a um cenário devastado. Esta sinopse começa a pontuar o arco narrativo de um protagonista que enfrenta os traumas da morte dos pais e reconhece as consequências indesejáveis de sua presença se não tentar verdadeiramente inspirar o povo. Então, Matt Reeves evoca o estilo de muitos cineastas, as abordagens de muitos filmes e a estética de alguns subgêneros históricos. Para pensarmos sobre isso, alguns leves spoilers podem ser trazidos no texto.
O heroísmo começa a ser colocado em xeque na sequência de abertura hipnotizante. A montagem em paralelo apresenta a noturna Gotham dominada pela violência e anuncia uma ação de seu vigilante solitário. O recurso é complementado pela narração em voice over do protagonista, que explica como a projeção do símbolo do morcego se tornou um instrumento de medo para os criminosos. No mesmo monólogo, ouvimos que ele não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mas a dúvida de onde possa estar amedronta os bandidos. A apreensão se amplia quando a câmera se alterna entre a projeção no céu e as sombras profundas em cada canto da cidade, ambiente de onde o vigilante pode sair a qualquer instante. A ambientação remete a um filme de terror, que praticamente se concretiza quando o Batman enfim se revela para impedir o espancamento de um homem no metrô. Saindo das sombras e golpeando seus oponentes, ele é um ser brutal que se denomina Vingança.
Tal qual “Batman – O cavaleiro das trevas“, “Batman” adota uma fotografia sombria e realista. A grande maioria das cenas se passa à noite e algumas delas ainda aprofundam a sensação de opressão através da chuva forte que cai. Esta sequência de abertura demonstra o que a narrativa adota como padrão visual, especialmente graças ao uso expressivo das sombras como parte integrante da personalidade e modo de ação de Bruce Wayne e de sua identidade secreta (ele chega a dizer “Não me escondo nas sombras. Eu sou as sombras”). Há ainda o forte contraste com filtros de luz vermelha que banham o quadro e conferem intensidade dramática ao que se assiste, a exemplo dos acontecimentos dentro de um clube noturno. Embora essas escolhas remetam à trilogia comandada por Christopher Nolan, principalmente o segundo capítulo, Matt Reeves está ainda mais interessado em adentrar na ambiguidade que perpassa os conflitos e a ambientação de sua Gotham.
Devemos também considerar o valor da trilha sonora assinada por Michael Giacchino, um compositor reconhecido por trabalhos inesquecíveis, por exemplo, na série “Lost” e nos últimos títulos da trilogia mais recente do “Planeta dos Macacos“. As composições trazem tons que variam do drama para representar os embates internos de Bruce Wayne, do terror para apresentar as ações do Batman e do suspense para pontuar as investigações dos assassinatos. Com a integração entre os diversos tons e efeitos dados por Michael Giacchino, a trilha assume uma imponência épica compatível com os conflitos internos do protagonista e com os perigos em torno de Gotham. Vale ressaltar igualmente a importância da canção “Something in the way” do Nirvana, utilizada em momentos específicos para abordar a solidão resultante da luta contra o submundo daquela cidade.
Após a apresentação do contexto em que a trama se passa e alguns traços de sua principal figura, a narrativa se debruça sobre os complexos impactos dos assassinatos de figuras políticas e da justiça por um serial killer mascarado. O vilão deixa charadas para serem solucionadas pelo Batman em cada cena do crime (envelopes nomeados com “Para o Batman”) e grava vídeos a serem publicados na internet com o intuito de escancarar as mentiras contadas para a população a respeito do Programa de Renovação. Segundo ele, o projeto voltado para o combate às drogas, a apreensão da gota (droga em questão) e para a prisão do mafioso Maroni seriam fachadas de algo criminoso encoberto pelas autoridades e responsável por prejudicar os cidadãos. Assumir a investigação como centro nervoso da narrativa (a coleta de pistas, a interpretação dos vestígios, a procura por mais informações, o mistério em torno de segredos do passado e o suspense ao redor das intenções do assassino) leva o filme para dois lugares interessantes e complementares: o lado detetivesco do Batman, tão presente nas HQ’s e e não desenvolvido no cinema (para deleite dos fãs mais ardorosos), e diálogos com filmes policiais como “Seven” e “Zodíaco“, ambos de Christopher Nolan.
Simultaneamente à investigação, o roteiro escrito por Matt Reeves e Peter Craig desenvolve a versão mais jovem de Bruce Wayne a aparecer nos cinemas. Em comparação com os demais, este é o mais recluso por raramente fazer aparições públicas durante o dia e quando o faz caminha pelas ruas com boné e óculos para não ser identificado – quando comparece a um funeral, muitas pessoas não sabem quem ele é ou reagem com surpresa frente a sua presença no local. A sensação de autoexclusão social é reforçada pela forma como Robert Pattinson aproveita os poucos minutos de tela em que aparece fora do uniforme, carregando na melancolia através do olhar baixo perdido e do resultado de uma maquiagem que faz seus olhos estarem constantemente envolvidos por manchas escuras (olheiras? traços góticos? pintura para sua identidade secreta?). O desalento de sua personalidade fica evidente também na narração em voice over da abertura, capaz de mostrar que ele sente profundamente a morte dos pais e mobiliza as emoções mal trabalhadas em um processo de vingança contra a criminalidade de Gotham. Para isso, utiliza sua inteligência dedutiva, ainda a ser aprimorada com o desenvolvimento da maturidade, e os apetrechos tecnológicos criados em uma caverna improvisada em uma estação de trem abandonada, como as câmeras em formato de lentes.
Enquanto o Batman e Gordon se esforçam para decifrar os mistérios, a nova versão de Gotham se abre diante de nossos olhos novamente como uma personagem à parte. Não se trata de resgatar a fabulação expressionista feita por Tim Burton em “Batman” de 1989 e “Batman: O retorno” de 1992, mas trabalhar a principal locação como um elemento expressivo que parece confrontar o homem-morcego. Por um lado, alguns personagens enxergam a cidade como o sinônimo da falência humana irrecuperável, por outro, o protagonista insiste em acreditar ser possível reconstruir o local e a moral de seus habitantes. Para tanto, as graves desigualdades espaciais encontradas ali precisam ser corrigidas. Em determinada área, o Gotham Square Garden abriga uma arena vasta para grandes eventos, as ruas principais possuem modernos outdoors e o mafioso Carmine Falcone se resguarda em uma construção esférica e luxuosa com vista para a cidade. Em outras regiões, a miséria e a marginalização social tomam conta no lixo deixado por todo canto, nas construções abandonadas, como o antigo orfanato, as pichações gravadas nas paredes e as pessoas viciadas em gota espalhadas por qualquer esquina ou espaço decadente.
Gotham é o que é devido ao modo como o crime penetrou nas suas entranhas. Por isso, a escolha de vítimas do Charada evidencia as relações ilegais, fraudulentas e criminosas entre mafiosos e figuras de autoridade da política, da polícia e da justiça. Acordos ilícitos, troca de favores, esquemas de corrupção, práticas violentas, controle social e falsos projetos populares são alguns recursos empregados pelos altos escalões do poder para se perpetuarem onde estão, a despeito do que isso significa para a cidade e para seus moradores mais simples. Nesse sentido, três personagens se colocam em relação direta com a corrupção moral sob alguma medida. Carmine Falcone é a representação do poder mafioso que interfere discretamente nos assuntos políticos sem que seja algo sabido por toda a população, embora esteja sempre às vistas de todos, sendo vivido por John Turturro com o comedimento de quem entende que seu personagem pode ser perigoso sem grandes rompantes emocionais. O Pinguim pode ser o criminoso dos esquemas menores e com um poder de alcance limitado, mas nada que o impeça de lucrar com seus delitos e viver uma vida confortável, sendo interpretado por um Colin Farrell magnético com a maquiagem que o deixa irreconhecível e com tiques vocais próximos de Robert de Niro. E James Gordon se torna o contraponto de um panorama aparentemente imoral por completo, cabendo a Jeffrey Wright encarnar um policial que se mantém como reserva moral da cidade.
No decorrer da investigação, Bruce Wayne se relaciona com Selina Kyle (Zoë Kravitz), uma funcionária que trabalha na boate do Pinguim e sobrevive com pequenos golpes. Ela se mostra, de algum modo, envolvida nos mistérios desencadeados pelos assassinatos por ter uma ligação com uma mulher misteriosa que se encontrava secretamente com o prefeito. Esta personagem é multifacetada também graças ao trabalho de atuação de Zoë Kravitz, que traz uma fisicalidade interessante para as sequências de ação e dilemas morais complexos para uma mulher formado por um passado conturbado e por um presente de possibilidades restritas. Quando ela está em cena, o Batman encontra tanto um contraponto para as lutas quanto para seu entendimento do combate ao crime. Além disso, as interações com Selina demonstram uma faceta controversa desse Bruce Wayne que a observa trocar de roupa e a coloca em uma situação de perigo na boate, levando o pretenso herói a uma posição ambígua resultante de seu olhar objetificador e de seu privilégio masculino, branco e rico. Esse ponto foi abordado pelo crítico Michel Gutwilen em seu texto que, dentre outros aspectos, invoca reflexões sobre o cinema de Brian de Palma para discutir o poder do olhar e da imagem do protagonista e do diretor Matt Reeves1.
Inicialmente, a dubiedade em torno do heroísmo é o que mais se sobressai. Porém, o desenrolar da investigação demonstra igualmente como a imagem pública de Gotham não se esgota à simples caracterização de uma cidade corrompida pela máfia. O cineasta vai além de uma abordagem já trabalhada anteriormente e faz paralelos com a história do cinema e com a história do tempo presente. O trabalho investigativo do Batman e de James Gordon é construído a partir de referências ao cinema noir2, sobretudo a ambiguidade moral, a ausência de maniqueísmos definidos e o uso da narração em voice over. É bem verdade que o recurso da narração em off pode soar excessivo em certos momentos, como no didatismo de algumas falas que explicam os conflitos dramáticos e os resultados da investigação. Já a relação entre mafiosos e autoridades é tratada dentro de uma chave analítica muito atual, notadamente a questão do “cidadão de bem”. As escolhas das vítimas, as falas do Charada e as sequências sobre a violência urbana tematizam a problemática contemporânea em torno do estereótipo de um cidadão exemplar que, na realidade, carregam preconceitos, autoritarismos, agressividades e brutalidades.
Por mais que a narrativa detetivesca e o mistério tenham papel significativo, o filme não abre mão das sequências de ação típicas daquele universo. Entretanto, Matt Reeves não se contenta com momentos clichês ou construções burocráticas. Como já mencionamos em relação à abertura, a luta do Batman com um grupo de criminosos é preparada e encenada como um filme de terror a partir da fotografia sombria, além de evocar as coreografias brutais utilizadas nas obras de Zack Snyder com golpes duros que chegam a impactar de algum modo os espectadores. Em outras cenas de ação, o cineasta busca outras construções estilísticas e efeitos sensoriais, que são capazes de proporcionar grandes set pieces e de fácil recordação. Por exemplo, na mesma produção, há sequências de produção de tensão, como aquela ocorrida a invasão de um carro por uma igreja, e outras de elaboração de grandiosidades épicas, como a perseguição de carro ao Pinguim e o clímax do terceiro ato no Gotham Square Garden.
As contradições presentes no subtexto dos crimes influenciam também nos paradoxos em torno de Bruce Wayne e de seu background. Após tantos filmes nesse universo, já existe uma imaginário consolidado para as origens do Batman e para as mortes do casal Thomas e Martha Wayne que, inevitavelmente, precisa ser abordado de alguma forma. Ao invés de novamente mostrar a cena de assassinato dos pais (algo que o público não cobra mais tamanha a quantidade de vezes em que este momento já foi filmado), Matt Reeves imprime uma visão mais provocativa ao passado daquela família. Dispensando a idealização de Thomas Wayne como um filantropo perfeito que é vítima da violência urbana desenfreada de Gotham, o diretor confere camadas mais complexas ao personagem e à influência de sua morte ao filho traumatizado. De um cidadão exemplar preocupado com a regeneração da cidade, Thomas é caracterizado como um homem imperfeito que comete erros e tenta preservar sua família com relações problemáticas com as piores figuras possíveis. A descoberta de segredos enterrados gera impactos desoladores sobre Bruce, como a ruína das bases de sua vida, a fragilização de seus referenciais familiares e o próprio nascimento do homem-morcego. Seria interessante aprofundar sobre a reformulação das origens do Batman, questionando os princípios vingativos de um rapaz enfurecido pela morte violenta dos pais, mas a conversa com Alfred coloca panos quentes na dubiedade agora existente na família Wayne.
A desconstrução de Thomas Wayne também puxa um aspecto poderoso que vem sendo cada vez mais incorporado aos filmes com personagens saídos do universo dos quadrinhos de super-heróis: a construção de vilões a partir de profundas desigualdade socioeconômicas e problemas relativos à miséria, ao descaso governamental e ao abismo entre as classes sociais. Foi assim com “Coringa” de Todd Phillips, embora a tendência não seja recente, haja vista que trabalhos de Martin Scorsese como “Taxi driver” e “O rei da comédia” já tenham trabalhado com essas ideias e sido inspirações para a obra de Phillips. Matt Reeves dialoga com os três filmes, fazendo com que evoquem explicitamente na narrativa sem serem apenas apropriações vazias e forçadas. No caso específico de “Batman“, o objetivo do Charada de desmascarar as mentiras contadas pelos poderosos vem de sua insatisfação enfurecida com o próprio passado, compartilhado é claro com diversas outras pessoas, em virtude da falsidade do Programa Renovação. Mais especificamente, é uma geração de jovens das classes sociais menos abastadas que cresceram excluídos pela falta de um suporte familiar, pela exposição a drogas graves, pela precariedade econômica, pela marginalização em espaços degradados e pela orfandade precoce. Como reagir a esse cenário social é um tema complexo que não tem respostas fáceis ou soluções prontas.
Logo, as reações de Bruce Wayne, Selina Kyle e o Charada são diversas ao mesmo problema. Em comum, os três partilham origens que se encontram na ausência familiar, nos problemas com seus pais e nos ressentimentos geradores de feridas emocionais. No entanto, as trajetórias dos três personagens não podem ser igualadas completamente, em função das diferenças econômicas entre eles. Ser órfão entre as classes sociais mais favorecida é um cenário, enquanto ser órfão em uma realidade de precarização social e opressão econômica é outro bem diferente. Tal discrepância é verbalizado por Selina ao dizer para Bruce: “Você vem falar de escolhas? Dá para ver que você cresceu rico.”. A existência de privilégios garante uma vida material confortável para o homem que viria a mobilizar seu sentimento de vingança para o vigilantismo. A exclusão econômica e as barreiras sociais fizeram Selina se tornar uma ladra que busca predominantemente a sobrevivência a partir dos meios mais imediatos, intensificando um ceticismo quanto à reconstrução moral de Gotham. E estes problemas sociais afetaram psicologicamente o Charada a ponto de levá-lo a criar um plano que inclui assassinato, tortura, manipulação, caos e destruição, apesar de a fonte de seu descontentamento ser compreensível.
Há um momento específico de representação das diferentes trajetórias descritas: o confronto verbal entre o Batman e o Charada na delegacia tendo um suporte de vidro entre eles. Trata-se de uma cena que pode remeter ao duelo intelectual entre o homem-morcego e o Coringa em “Batman – O cavaleiro das trevas” e os policiais David Mills e William Somerset e o serial killer John Doe em “Seven – Os sete crimes capitais“. A mise-en-scène é semelhante, o teor das discussões tem pontos em comum e a atuação de Paul Dano remete à performance de Heath Ledger (embora possamos elogiar o trabalho de Paul Dano, não cabem comparações com Heath Ledger, especialmente se considerarmos que a força do Charada está muito mais no desconhecimento do que sua ameaça significa como um todo). Apesar das semelhanças, Matt Reeves não faz simplesmente uma cópia do trabalho de Christopher Nolan. Em “Batman – O cavaleiro das trevas“, o discurso do Coringa defende que sua existência como vilão depende da rivalidade com um herói, não podendo um eliminar o outro totalmente. Já em “Batman“, o monólogo do Charada choca ao expor que o vigilante noturno poderia ter inspirado uma versão distorcida de um justiceiro.
Tal inspiração deturpada também comenta muito sobre a contemporaneidade, assim como a violência de Gotham falava sobre a falácia do “cidadão de bem”. O charada gravava vídeos de seus crimes para serem publicados na internet, o que gerava grande alcance e um alto número de visualização e comentários (muitos deles, inclusive, concordando com as ações violentas filmadas). Acima de tudo, o que mais gera desconforto é a reviravolta no terceiro ato, quando a escala do plano do antagonista é revelada. A criação de um canal, a realização de lives, o uso de redes sociais e a disponibilização de vídeos com suas ideias e planos contribuem para a formação de uma comunidade perigosíssima no mundo digital. Nesse ambiente virtual, são compartilhados discursos de ódio, são elaborados planos de violência maciça e são fortalecidas visões messiânicas de expurgo generalizado. Então, o desconforto vem da atualidade dessa questão em um tempo em que o anonimato da web e a criação de comunidades reacionárias/autoritárias/conservadoras se tornaram parte constitutiva de um grande problema social.
Colocando-se em perspectiva um novo olhar para Bruce Wayne/Batman, o subtexto dos crimes cometidos em Gotham e os comentários sobre questões da atualidade, o arco narrativo do protagonista contempla um conflito poderoso até então não desenvolvido nos filmes anteriores. O personagem se intitulava “Vingança” e estava disposto a usar suas habilidades para erradicar a violência da cidade em uma jornada muito mais pessoal do que consciente dos dilemas sociais implicados. Com o passar do tempo, percebe que sua cruzada pode ter sido interpretada de formas perigosas, como é o que acontece no discurso do Charada e na declaração de um criminoso no terceiro ato que também reivindicaria para si o nome “Vingança”. Esses são pontos de virada na concepção de Bruce, que passa a entender que precisaria buscar algum senso de heroísmo e de propagação da esperança para os cidadãos, não mais concentrando-se em um simples espírito vingativo, mas defendendo que tipo de luta seria a verdadeira luta a se travar pelo bem de Gotham e de seus moradores. Tendo em vista a ruptura que se dá, as cenas finais no Gotham Square Garden são belíssimas do ponto de vista estético e em termos dramáticos sobre a definição do ser um herói.
Diferentemente das demais produções que habitam este universo, “Batman” aprofunda em uma abordagem moralmente ambígua jamais antes vista. A caracterização do protagonista, as ressonâncias da investigação criminal e de seus resultados, os comentários ao nosso tempo e a construção do panorama geral fogem de definições simplistas e reorientam a noção de heroísmo. As áreas cinzentas são muitas e as certezas prévias sobre certos personagens não se sustentam tanto. Ser herói não é um dado naturalizado em torno da ideia de perfeição. Ser um filme de super-herói não obedece a convenções pré-estabelecidas de estilo e abordagem. O Batman vive sua própria jornada em busca de algum senso de heroísmo, pois, antes de tudo, é algo que faz parte de seu arco narrativo em algum futuro desejado. Tantas complexidades novas nos permitem pensar como os próximos filmes podem inserir outros personagens conhecidos dentro da modo do easter egg, mas também fortalecer discussões densas sobre o que é ser herói.
