No início de 2022, os fãs de séries vêm acompanhando semanalmente os episódios da segunda temporada de “Euphoria“. Os conflitos de Rue, Jules, Fezco, Maddy, Nate, Lexi e Kat gravitam em torno de temáticas sensíveis ao universo juvenil, tais como relacionamentos, sexualidade, relações familiares e drogas. Em comum, todos os personagens atravessam um percurso para a vida adulta que envolve o autoconhecimento e a projeção da imagem pública. Para aqueles que se sentem ansiosos aguardando o lançamento semanal, outras produções com um tipo de história tão apreciada podem dialogar e evocar semelhanças. Nesse estilo específico, também é possível encontrar um drama protagonizado por jovens em “A vida depois“, disponível na HBO MAX.
Primeiramente, é necessário advertir que o filme não é idêntico à série embora tenha temas próximos e personagens em uma etapa de vida similar. No entanto, a abordagem da narrativa se diferencia na trama e em uma estética menos explícita no tratamento das questões sexuais e o uso de drogas. Em sua história, Vada é uma adolescente que estuda no Ensino Médio e vive dentro dos parâmetros da classe média, morando com os pais Carlos e Patricia e a irmã Amelia, além de conviver constantemente com o melhor amigo Nick. Até então, ela passa por momentos típicos da sua idade, mas sua vida muda totalmente quando um atirador invade seu colégio e mata alguns de seus colegas estudantes. A partir daí, a jovem precisa lidar com o trauma da tragédia, ao mesmo tempo que começa a criar laços com Mia e Quinton (outros sobreviventes do tiroteio).
A esteia de Megan Park na direção de longas metragens combina dois tipos de tramas/narrativas/estéticas nem sempre tão articuladas no cinema. Até então, ela havia dirigido curtas metragens e construído uma carreira maior como atriz no cinema e na TV, sendo mais conhecida por atuar na série televisiva “The secret life of american teenager” entre 2008 e 2013. A diretora constrói um trabalho que se assemelha à estética televisiva e também é preenchido por muitas doses de espontaneidade, especialmente na forma que comanda o elenco e propõe uma unidade visual própria (ainda que discreta). A realizadora e também responsável pela escrita do roteiro transita, a partir de seu olhar espontâneo, pelo subgênero coming of age e pelo enredo baseado em eventos reais de invasão de atiradores em escolas dos EUA.
De um lado, o filme aborda a jornada de amadurecimento de uma jovem em muitos níveis, desde a consolidação de sua identidade e os conflitos geracionais na família até a abertura para novas experiências. Nesse recorte, podemos lembrar de títulos como “Aos treze“, “Juno” e “Lady Bird“. Por outro lado, a obra coloca mais um desafio no arco de uma protagonista que passa por uma fase de tantas transformações em direção ao futuro: o trauma gerado após ter vivenciado uma situação extrema de tiroteio em sua escola (algo que a faz reviver um passado doloroso). Nesse segundo recorte, podemos voltar a “Elefante” e a “Precisamos falar sobre Kevin“, apesar de o interesse se voltar menos aos antecedentes ou à concretização da violência – como no trabalho de Gus Van Sant – e a perspectiva ser a de uma sobrevivente após o crime – e não da mãe do assassino como no trabalho de Lynne Ramsey.
Os primeiros minutos representam diretamente a dimensão coming of age da trama como se fosse uma comédia leve sobre o cotidiano. Vada se prepara para mais um dia de colégio fazendo suas necessidades fisiológicas, escovando os dentes e tomando banho. Mais tarde, ela pega carona com Nick e os dois fazem piadas escatológicas. Ao longo do dia, mantém uma relação de amor e provocação com sua irmã, ao se perturbarem pela manhã sem realmente brigarem e mostrarem seu vínculo quando Amelia telefona para Vada para falar da primeira menstruação. Todos esses momentos correspondem ao dia a dia de uma jovem de 16 anos, assim como a fotografia de cores vivas e naturalistas remete à estética televisiva (endossada até pela própria textura da imagem). Além disso, a caracterização da protagonista indica rapidamente como uma parte de sua personalidade é a espontaneidade, vista no figurino despojado de roupas largas e confortáveis e na atuação extrovertida de Jenna Ortega.
A normalidade é interrompida quando o atirador invade a escola e começa a fazer vítimas. Ao invés de direcionar a câmera diretamente para a violência em si, Megan Park estabelece a tensão de outro modo. Vada estava no banheiro – tendo há pouco conversado por telefone com Amelia – e falava brevemente com uma colega que se maquiava. Ela enviava mensagens por telefone para alguém sobre a tal colega que se maquiava. Tudo é suspenso quando as duas escutam estampidos de tiros em algum lugar próximo e se escondem em um dos compartimentos do banheiro. Ao longo de seis minutos, as duas estudantes se desesperam sem saber o que está acontecendo e se estão seguras, bem como os espectadores também se sentem tensos (porque têm apenas os ruídos de tiros, gritos e da sirene da polícia para se orientar). No instante em que Quinton busca refúgio no mesmo local, nossa inquietação cresce ao ver sua camisa ensanguentada. A conclusão dessa sequência é feita através da passagem do desespero das jovens para o desfecho da tragédia, alternando-se expressivamente do plongee para o contra-plongee do banheiro e das ruas próximas.
Como o roteiro de Megan Park se interessa pelos desdobramentos do tiroteio, a narrativa chega ao seu ponto principal ao acompanhar os reflexos da tragédia na protagonista. Mesmo que Vada não externalize suas emoções, é visível perceber que ela sofre com os traumas de uma violência que chegou tão perto e vitimou pessoas de seu ambiente escolar. Como veremos adiante, a adolescente fala para uma psicóloga que é muito boa em controlar emoções por não entender como liberar o que sente pode ser algo produtivo. Ainda assim, há cenas que revelam como Vada está assustada: os pesadelos sucessivos, a dificuldade de voltar ao colégio, as afirmações sobre sentir um vazio dentro de si e os silêncios retraídos sobre o que aconteceu e as reportagens na TV. Especialmente quando Vada está sozinha, percebemos como ela sofre para processar os fatos, tanto na composição visual daqueles momentos com luzes frias e estilizadas, quanto na mudança na interpretação de Jenny Ortega para uma postura introspectiva nada parecida com sua personalidade extrovertida e comunicativa.
Inicialmente, Vada encontra algum conforto em Mia. As duas partilham o fato de terem vivenciado e sobrevivido juntas ao tiroteio, o que cria um laço capaz de colocá-las em contato constante. A princípio, trocam mensagens pelo celular oferecendo apoio recíproco e se informando sobre os outros sobreviventes. Após alguns dias, as jovens aumentam a proximidade deixando a chamada de vídeo pelo notebook ligada enquanto dormem à noite e passando a se encontrar na casa de Mia. A partir do tempo de convivência e interação cada vez maior, descobrimos como outra estudante tenta lidar com seus traumas. A colega tem um alto padrão de vida, evidenciado pela residência com grande quantidade de vinho, uma piscina e uma sauna, mas não tem quem faça companhia e demonstre carinho, pois os pais estão sempre viajando a trabalho. Por isso, Mia não se expressa tanto e prefere usar poucas palavras para se comunicar. Assim, ao colocar as duas personagens para se relacionar, a cineasta quebra o estereótipo da garota bonita e popular de Mia e desenvolve uma relação muito interessante para o potencial dramático da obra.
Enquanto Vada e Mia se aproximam cada vez mais, a protagonista se sente e se coloca distante dos familiares. Os momentos em que estão reunidos parecem tensos e inseguros como se todos esperassem um rompante emocional da filha mais velha, a exemplo de momentos como a reunião na mesa de jantar e em frente a um noticiário da TV. Individualmente, os parentes também não sabem como agir nem como oferecer ajuda a uma Vada que passa praticamente todo o tempo em casa sozinha. O pai Carlos está muito pouco com a família, algo que varia entre as obrigações profissionais e a fragilidade do desenvolvimento do personagem. A mãe Patricia tenta se colocar sempre disponível para Vada, porém não sabe como fazer isso concretamente e se apega às falas da filha de que está melhorando ou de que seus amigos estão seguindo em frente. E a irmã Amelia, parecendo mais velha do que é realmente (ao falar em diversas orientações sexuais e gravar danças para postar na internet), faz comentários inapropriados (como perguntar detalhes da tragédia), sem conseguir conviver tanto com a irmã como de costume, como na frustrada tentativa de chamar Vada para ir ao Starbucks.
Quem mais percebe o afastamento emocional de Vada é Amelia, que a observa de longe com uma expressão preocupada sempre que a irmã mais velha se refugia em um canto com o olhar perdido. Na própria cena do convite para o Starbucks, a protagonista não aparece porque está atrás de uma cortina falando na mesma posição oculta. Possivelmente, esse distanciamento pode ter contribuído para as dificuldades vividas pela jovem ao enfrentar seus traumas. A contragosto, ela passa a frequentar uma psicóloga sem expor diretamente o que sente e pensa, através de um humor que se coloca como mecanismo de defesa e resistência. Outra dimensão do processo inclui, após muita insistência da mãe, o retorno à escola onde o trauma foi causado. Retorno este que também apresentou obstáculos, tais como: precisar passar por um detector de metais na entrada, assistir às palestras sobre segurança escolar e conseguir ir ao banheiro onde se escondeu do tiroteio.
Conforme o universo de Vada se expande para fora dos limites de sua residência, a narrativa vislumbra outras experiências de estudantes sobreviventes além de Mia. A amizade tão forte com Nick se esfria para a protagonista quando o amigo reúne suas forças para atuar publicamente na luta por segurança nas escolas, uma postura que se distingue da maneira como a amiga lida introspectivamente com o trauma. Entretanto, fica a sensação de que o personagem poderia ser mais explorado. Em paralelo, uma nova amizade toma forma a partir do contato maior de Vada com Quinton, o jovem que teve uma perda enorme no tiroteio e precisa aprender meios de lidar com ela. O que inicialmente se mostra solidariedade perante o luto (nos primeiros encontros entre eles após o incidente) logo se torna um companheirismo visto nas cenas em que Vada conversa com Quinton em uma lanchonete e quando eles assistem a um filme na casa da protagonista.
O convívio entre Vada e Quinton é um dos exemplos das novas dinâmicas da adolescente, a princípio dentro da abordagem da trama de superação de traumas, mas progressivamente no estilo do coming of age. Não leva tempo para começar uma química entre eles e alguns flertes românticos. Porém, acima de tudo, o relacionamento com Mia é aquele que mais se sobressai, pois apresenta camadas e transformações sucessivas que ganham maior complexidade. Elas começam como amigas que buscam companhia para enfrentar suas próprias dores e, assim, conversam sobre os pais, as aulas de dança de Mia, seus sentimentos e outros assuntos. Em seguida, experimentam novas possibilidades próprias da idade, principalmente beber álcool e consumir maconha em momentos cômicos e reveladores do escape da realidade que desejam. E, por fim, a abertura para novas experiências envolve também a descoberta dos diferentes matizes da sexualidade. Todas as interações são encenadas com grande espontaneidade, tanto na projeção no quadro das mensagens trocadas pelos aplicativos de conversas em celulares, quanto no diálogo juvenil entre elas baseado em gírias, cacoetes de fala e uma cadência própria da velocidade de raciocínio e de expressão dos jovens.
É interessante notar que os encontros entre Vada e Mia também são movidos por uma mise-en-scène espontânea criada por Megan Park. Dependendo do efeito que se pretende gerar, a cineasta trabalha diferentes escolhas formais e expressivas. Os impactos que as drogas têm sobre a protagonista são tratados de modo cômico, porém sendo encenados sem se repetirem em duas sequências diferentes: o consumo de maconha com Mia gera humor porque parte de um corte abrupto para revelar como as jovens estão, ao mesmo tempo em que mantém um plano fixo para mostrar o relaxamento de Mia e a agitação de Vada. Já o uso de outro tipo de droga na escola investe no humor provocado pela perda da noção do que é realidade e alucinação, sendo filmado por uma câmera mais ágil e cortes mais fluidos. Em um momento posterior, as duas adolescentes modificam sua relação ao construir maior intimidade e experimentar possibilidades sexuais que não cogitavam anteriormente, levando a narrativa a abraçar uma decupagem mais intimista com o plano fechado nas personagens e uma iluminação de cores mais lavadas.
Passeando por núcleos e subtramas específicas, a produção posiciona os conflitos principais, ao mesmo tempo que desenvolve as nuances da protagonista. Em sua família, Vada afasta, principalmente, Patricia e Amelia, repelindo as tentativas da mãe de dar suporte às necessidades emocionais da filha e abrindo brecha para a irmã mais nova imaginar que a adolescente a culpa pelo risco que correu. Entre os amigos, ela se depara com um dilema surgido da fase de amadurecimento da juventude que a deixa em dúvida sobre como lidar com um turbilhão de sentimentos e como serão suas relações com Nick, Mia e Quinton no futuro. À medida que esses conflitos avançam, acompanhamos a força da espontaneidade de Jenny Ortega interpretando uma personagem carismática e espirituosa antes do tiroteio, que se transforma em uma adolescente fechada e emocionalmente reprimida após o incidente e que, gradualmente, se abre para a autenticidade de uma jovem movida pelo desejo de viver novas experiências e para a liberação de todo tipo de emoção que carrega.
Mesmo nem sempre fechando com força os conflitos que propõe, a diretora e roteirista cria momentos expressivos para a trajetória de Vada. O componente dramático perpassa a reaproximação das irmãs, sobretudo graças à intensidade do desabafo de Amelia feito por Lumi Pollack e às interações bem construídas pelas personagens e atrizes ao longo do filme (que nos fazer nos importar com seus destinos). O drama e a comédia se mesclam na reaproximação entre mãe e filha, porque Vada reconhece que precisa dividir mais sua vida com Patricia (especialmente por não ter avisado que passaria uma noite fora de casa) e também desata a contar tudo que escondia com grande velocidade, a ponto de deixar a mãe sem reação. Comparando os dois conflitos, a reconciliação de pai e filha não deixa de ser frustrante em virtude da marginalização de Carlos pelo roteiro e dos clichês em torno da ideia de liberar as emoções gritando em um ambiente escolar.
Sensação semelhante reveste as subtramas ao redor dos amigos da jovem. Nem todas recebem tempo de tela e um desenvolvimento coerentes com seus potenciais, o que faz com que algumas tramas sejam deixadas de lado sem uma conclusão. As eventuais diferenças entre Vada e Nick se encerram na narrativa com um momento em que se desentendem a respeito da situação de ambos após a tragédia, mas sem assumir um tom de encerramento propriamente. O mesmo ocorre com a amizade feita com Quinton que se encerra abruptamente quando um impasse se coloca entre eles, como se, narrativamente, tudo chegasse ao fim no que seria o segundo ato. O relacionamento com Mia é o único que possui, de fato, uma conclusão, pois existe uma cena na qual elas conversam e se entendem com relação ao acontecimento que as deixavam constrangidas, inclusive chegando ao momento em que Vada espera a aula de dança de Mia terminar para se encontrarem como símbolo de seu vínculo.
No entanto, é essa própria sequência passada na rua em frente à escola de dança que consegue completar a jornada de Vada sem a inocência de acreditar que todos os traumas já haviam sido superados e a vida seguiria seu curso como deveria ser. Tomar consciência de que outro tiroteio poderia acontecer em diversos outros colégios nos EUA dispara na protagonista os sentimentos até então reprimidos para que pudesse realmente se deixar levar pelo que sente, da mesma forma que demonstra que aquelas dores ainda deixarão marcas por um longo período. E a sequência final é filmada com a expressividade que Megan Park já havia feito anteriormente através de meios diferentes, deixando a jovem fora de quadro chorando e soluçando enquanto os espectadores apenas escutam esses sons, como se a deixasse à vontade e sozinha. Assim, “A vida depois” cria uma história de amadurecimento que incorpora entre as dores possíveis dessa fase da vida os traumas de ter vivenciado uma situação de extrema violência que não cessam rapidamente. O melhor seria dizer que a trama coloca em questão o desafio de seguir vivendo.
